Que Halloween estranho este
Não há risos mascarados pelas ruas
Nem ninguém toca à campainha
Para pedir doces
Ou pregar partidas
Gostemos ou não
Destas realidades culturais assimiladas
É triste ver um espaço vazio
No lugar que tão alegremente
Poderiam ter preenchido
Este é o Halloween na Alemanha de 2020
Como sempre fui ao cemitério
Deixar flores na campa dos meus sogros
O meu pai foi cremado em 2009
A minha mãe está felizmente viva em Portugal
E os meus amigos e filhos de quatro patas ausentes
Estremecem no meu peito, embalados pela saudade
Esta noite não é de terror
Nem de medo
É de reconciliação
Entre a luz e as trevas
O que já foi
E o que ainda é
Sejamos unos
No espelho oblíquo
Da energia eterna
Ana Wiesenberger
31-10-2020
Quarentena
À força de se esperar
Não se espera
Os dias passam por nós
Numa dormência estúpida
Intercalada por momentos de inquietação
Não fui a única a ceder ao impulso de arrumar
Inventariar o útil e o dispensável
A julgar pelos sacos recorrentes
Junto aos contentores do lixo
Em tempos de caos
O medo leva-nos a procurar a ordem
A ilusão de que podemos moldar a realidade
Com as nossas mãos humanas
Nas ruas as pessoas deslizam
Como ratos inseguros num território desconhecido
E se param a uma distância confortável
Para cumprimentar amigos e vizinhos
Fazem-no com os olhos errantes
Ansiosos por comunicar
Arredios pelo hábito construído da desconfiança
Os que se trancam em casa
Barricados em obediência e pânico
Vomitam em expressões comezinhas e lugares-comuns
A inveja dos audazes que vêem por detrás da vidraça
Secretamente desejosos de os ver cair doentes
Por não contarem os passos e os minutos
Que se atrevem a viver fora de portas
Em tempos de pandemia
Quando o vírus se afastar
Da contabilidade diária no ecrã
Teremos de reaprender a proximidade
Deixar de sentir as mãos e os braços dos outros
Como pás a abrir-nos o leito de morte
Ana Wiesenberger
24-04-2020
Imagem – Salvador Dali
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Festejar hoje Abril
É manter a história de um povo viva
Nas gerações que não o viveram
Mas que dele beneficiam
É enfrentar a incredibilidade nos rostos jovens
Perante a realidade histórica do antes e depois
Que não conseguem vislumbrar
Um dia virá em que o fulgor de Abril
Só será testemunhado nas fotografias antigas
Num compêndio de história
E será mais uma data a aprender
Tão distante dos dias como para nós
A Implantação da República e a Restauração
Não é possível contrariar o impacto do tempo
Mas é possível vivificar uma mensagem
Ilustrá-la com o registo artístico de tantos
Que lhe souberam dar voz, cor e melodia
Por isso, hoje e sempre
Cabe-nos celebrar o 25 de Abril
Com o peito aberto
Em cravo, coragem e caminho
Ana Wiesenberger
Os meus poemas estão gastos, puídos
Como roupas velhas
Máscaras descartadas para o vazio
Das peças que há muito saíram de cena
Leio-os, como se neles acariciasse
O desejo de um devir que embalo
Numa incerteza de maré baixa
Névoa a suplicar raios de Sol
Estrelas que iludam e animem
A minha vontade de sonhar universos
Nos labirintos das folhas brancas
Ana Wiesenberger
01-01-2020
Imagem - Milan Thomka Mitrovsky
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Ganhei medo aos dias Como se em cada hora A agulha dos minutos Pontuasse a minha carne Com pequenas feridas
Ana Wiesenberger 17-10-2019
Imagem – John French Sloan
A escrita exige Consome Sacia Abre janelas Desenha nuvens Aquece Estremece Enlouquece
Porém, se dela fugimos Por medo ou cansaço Castiga-nos com arremessos de silêncio Esmaga-nos com piruetas de sílabas Teatro de sombras chinesas A assombrar o nosso cérebro inseguro
Rastejamos, então, humildes Escravos vencidos a mendigar o perdão As boas graças que nos devolvam o verbo A capacidade de respirar estrofes Parágrafos sempre imperfeitos Escritos com a tinta das nossas veias A galgar o muro branco da página
Ana Wiesenberger 21-05-2019
Quando o tempo vai e vem Num percurso sem sentido Há que enveredar pelas sombras E descobrir o campo magnético Que o disparata sem nos suster
Ana Wiesenberger 31-03-2019
Imagem – René Magritte