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Às vezes, não sei se sinto
Ou se é apenas o querer sentir
Que me traz o Natal
Em forma de luz profunda
Ou de abraço apertado
Dos que desejamos perto de nós
Às vezes, é tanta a dor da ausência
Que nos transmuda em nós pontiagudos
E nos deixa prostrados de medo
Do que não logramos compreender
Às vezes, eu queria ser uma grinalda colorida
Uma Árvore de Natal construída passo a passo
Na lentidão com que o amor acontece
Às vezes, só consigo ser a cadeira vazia à mesa
Da consoada
O eco dos que já não se vêem junto a nós
E estão ali eternamente presos nos risos e nas palavras
Que partilhamos
Nas vozes de todos os Natais que vivemos
Às vezes, eu fico trémula como uma lâmpada com defeito
Numa cadeia de luzes em redor de um presépio perfeito
E só assumo a minha realidade
Como um personagem vagamente concebido
Para ser gente num conto alusivo à Quadra Natalícia
Ana Wiesenberger
Imagem - Van Gogh
Leio desalmadamente
Como se os livros fossem tábuas
As palavras, pregos
E só o verbo me alimentasse
A existência
Saboreio as ideias dos autores
Vou ao encontro das imagens
Da biografia por detrás de cada obra
E alegro-me como uma criança
Quando são vivos e acessíveis
À comunicação
Há os desconhecidos
Os que já conheço um pouco
Dois ou três volumes de companhia
Há os que tememos ler
Porque entram dentro de nós
E fazem estragos irreparáveis
Há os que queremos ler e não conseguimos
Porque não os encontramos
Ou porque nos encontramos
Quando para eles
Não estávamos preparados
E por isso, junto à minha cama
E debaixo dela
Armazeno uma profusão de estilos
E discursos
Para não ter de me erguer do leito
Para encetar o diálogo necessário
Ao tempo antes de adormecer
Com um parceiro adequado
Ana Wiesenberger
02-06-2015
Agora que já não estás aqui
Que tento coser os teus contornos
Nas sombras de outras velas
Que se passeiam à luz consciente da noite
Que nos traz a todos a saudade
Do que não soubemos reter
Passam as vozes e os momentos de outrora
Numa passerelle de vida inacabada
Ressequidos num passado de tronco morto
Passam as recordações do que queríamos fazer
E não conseguimos
Rolam as lágrimas pelas nossas faces desprevenidas
A esvair o calor dos dias
Ah, se eu pudesse
Se eu fosse capaz de franquear novamente
As portas da infância
Se eu te pudesse dizer
No meu modo desajeitado, mas exigente
Fica connosco, mais um pouco, Pai!
Temos tanto para conversar
Ana Wiesenberger
A dor é uma aprendizagem
Uma vereda a percorrer
Apesar do medo
Não é possível viver
Sem a conhecer
Uns mais; outros menos
Uns com mais coragem,
Resiliência
Outros quase envergonhados
A tentarem fugir
Como se ainda fossem crianças
E quisessem tapar a cabeça com o cobertor
Para se esconderem do monstro
Que habita a escuridão do quarto
Uns e outros
Mendigos errantes
Em busca da luz opaca:
Esquecimento, entorpecimento dos sentidos
Ânimo falso para prosseguir o caminho
Ana Wiesenberger
28-02-2021
Que Halloween estranho este
Não há risos mascarados pelas ruas
Nem ninguém toca à campainha
Para pedir doces
Ou pregar partidas
Gostemos ou não
Destas realidades culturais assimiladas
É triste ver um espaço vazio
No lugar que tão alegremente
Poderiam ter preenchido
Este é o Halloween na Alemanha de 2020
Como sempre fui ao cemitério
Deixar flores na campa dos meus sogros
O meu pai foi cremado em 2009
A minha mãe está felizmente viva em Portugal
E os meus amigos e filhos de quatro patas ausentes
Estremecem no meu peito, embalados pela saudade
Esta noite não é de terror
Nem de medo
É de reconciliação
Entre a luz e as trevas
O que já foi
E o que ainda é
Sejamos unos
No espelho oblíquo
Da energia eterna
Ana Wiesenberger
31-10-2020
Quarentena
À força de se esperar
Não se espera
Os dias passam por nós
Numa dormência estúpida
Intercalada por momentos de inquietação
Não fui a única a ceder ao impulso de arrumar
Inventariar o útil e o dispensável
A julgar pelos sacos recorrentes
Junto aos contentores do lixo
Em tempos de caos
O medo leva-nos a procurar a ordem
A ilusão de que podemos moldar a realidade
Com as nossas mãos humanas
Nas ruas as pessoas deslizam
Como ratos inseguros num território desconhecido
E se param a uma distância confortável
Para cumprimentar amigos e vizinhos
Fazem-no com os olhos errantes
Ansiosos por comunicar
Arredios pelo hábito construído da desconfiança
Os que se trancam em casa
Barricados em obediência e pânico
Vomitam em expressões comezinhas e lugares-comuns
A inveja dos audazes que vêem por detrás da vidraça
Secretamente desejosos de os ver cair doentes
Por não contarem os passos e os minutos
Que se atrevem a viver fora de portas
Em tempos de pandemia
Quando o vírus se afastar
Da contabilidade diária no ecrã
Teremos de reaprender a proximidade
Deixar de sentir as mãos e os braços dos outros
Como pás a abrir-nos o leito de morte
Ana Wiesenberger
24-04-2020
Imagem – Salvador Dali
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