Acordei Há Pouco
Acordei há pouco
Entrevejo o dia sombrio
Através da teia da minha cabeça
E apercebo-me que o Martin Eden
E o Pamuk
São mais reais ainda
Do que o ar, que entra pela janela
Aberta com o propósito resoluto
De ouvir sons comezinhos
Suavizados pelo pipilar dos pássaros
Para actualizar a data
No meu calendário trôpego
Do licor de maçã da véspera
Bebi só um pouco
Dois copinhos atarracados
Baixos e largos de estatura
Nada que desperte em mim
Fanfarras Modernistas
Ais Simbolistas
Mergulhos em Paraísos Artificiais
Ou penhascos românticos, suicidas
Aliás, fi-lo em companhia
Muito boa companhia, até
Sentei-me com o Fernando
E rimos juntos
Sobre as lacunas do nosso sentir
Os nossos anseios pedantes
De ser e não ser como os outros
A nossa febre de lucidez
Que nos queima a fantasia
E desarticula os nossos afectos
Em notas discordantes
Quando já mal nos víamos
Submersos pelo nevoeiro do álcool
E do fumo dos cigarros intermináveis
Falámos da tragédia das nossas infâncias
Dos nossos nomes, réplicas de um antecessor
Precocemente falecido
A que os nossos pais nos condenaram
Falámos com gosto
Sobre o calor das letras
A inocência tentadora do branco
Do papel
E do cheiro inebriante, reconfortante
Da tinta
E como, já nada mais
Tínhamos a dizer um ao outro
Despedimo-nos com um aceno breve
E afastámo-nos para o abismo de Morfeu
Contrafeitos na cedência dos passos
Conscientes da paz
Que não viria
Ana Wiesenberger (in Corredores, Esfera do Caos, 2015)
Imagem - Vito Campanella