Acordei bastante tarde Dormi muito; não bem, mas muito Como se tivesse passado a noite A procurar nas horas longas O descanso para as minhas forças amarrotadas Que não vinha
Agora, café De facto, muito café Na ilusão terna, de que a cafeína me desperte E a cada célula devolva A capacidade plena de vivenciar a realidade Com os cinco sentidos A tecerem um Sol miraculoso Na escuridão da minha dúvida
Há uma tertúlia de poesia Onde eu queria estar esta tarde O meu espírito já foi para a estação Com receio de não apanhar o comboio E perder o início da sessão Mas o corpo está inerte Aconchegado em almofadas na cama A abominar movimento Num cansaço que enrola o tempo Num novelo emaranhado Cheio de nós complicados A desafiarem a minha paciência
E então, que faço? Mais café, mais ar, mais vozes Que chegam a mim pela janela do meu quarto Para me lembrar que há vida lá fora E eu devo elevar-me inteirinha no balanço da brisa E agarrar o dia Com as mãos postas em oração
Porque será que estou tão desatenta Apática, até, enquanto oiço e vejo O Otelo Saraiva de Carvalho a falar De um Abril de 1974 feliz
Talvez, tudo me pareça irreal, estranho Uma fantasia, um sonho de patriota Uma vontade explosiva Um borrão de esperança na nossa história
Parece o Momentos de Glória Misturado com E Tudo O Vento Levou Com qualquer coisa de Os Últimos Dias de Anne Frank Com Elogio da Loucura ao fundo
Talvez, eu já tenha entrado numa dimensão De Lobo das Estepes em acordes intercalados Com o Livro do Desassossego Com banda sonora do Grito de Allen Gingsberg Na voz de um Rutger Hauer desesperado Em Blade Runner
Se calhar, só estou triste E é possível que As Ondas que vêm E vão da televisão à minha cabeça Me levem ao pós-Animal Farm 1984 revisitado Admirável Mundo Novo sem soma capaz de nos iludir Num bem-estar de equilíbrio químico
Será que vamos permanecer serenos Como perus em véspera de Natal Cordeiros por alturas de uma Páscoa Que parece não terminar
Ana Wiesenberger (in Portugal, Meu Amor) 24-04-2013
Do Abril mágico da minha pré-adolescência Ficou a distância a alongar-se em dor e revolta Por ter acreditado que as portas se tinham aberto Que os presos vítimas do regime de mordaça Tinham sido libertados Que o povo tinha voz
Do Abril ao longe Que em cada dia que passa Marca mais a ausência Ficaram janelas nas nossas almas Agora novamente gradeadas De medo e angústia
Do Abril quase irreal Ficou-nos a consciência triste Feita de cumplicidade de um povo desatento Que permitiu aos algozes da democracia Estenderem as suas raízes canibais No solo do nosso país pequenino e lindo
Do Abril guardado no peito Ficaram as mãos inocentes de sangue A empreenderem combates com as armas de outrora Que talvez já não nos sirvam para abrir caminho
Do Abril que teremos de fazer acontecer Não ficarão cravos nem canções Será ainda e sempre verdade Que O Povo Unido Jamais será vencido?
Ana Wiesenberger (in Portugal, Meu Amor) 21-04-2013