Amai-vos uns aos outros Se tudo é breve Até a alvura da neve Se transforma em lama Sejam a flor rara no alto da montanha Sejam verdade Sejam luz
Que os vossos olhos Não pousem nos olhos dos vossos irmãos Com ignomínia Que os vossos lábios Não ocultem cinismo Por detrás dos sorrisos
Amai-vos uns aos outros Como o calor do sol Que a todos abraça sem distinção Sejam mãos estendidas Sejam pão e água Sejam abrigo e bússola
Amai-vos uns aos outros Na alegria E na tristeza Na chegada E na partida No recolhimento dos vossos lares E no burburinho da multidão
Amai-vos uns aos outros Para que no amanhã se acrescentem As bem-aventuranças hoje construídas Para que a solidariedade seja a força Para que a união seja o hino
Amai-vos uns aos outros Com a benevolência da tolerância A coroar os dias Com a paciência de crer, de premeditar Na comunhão feita de integridade Que é possível aos homens Transcender a utopia E dar corpo ao verbo Religar Ana Wiesenberger 31-03-2013
Pelas janelas dos meus escombros Passa a vida em episódios soltos Numa rotação lenta de saudade E distância
Não sei, se oiço, mas ainda sinto E parto com eles na amargura dos desfiles Das lutas que se querem feras E transmudam-se em cordeiros Pela imbecilidade das vontades Que não construíram significados Ao longo do tempo
É triste viver aqui É mais triste ainda escutar o povo E a negligência, a abstinência Com que vivem os dias Numa realidade pretensamente apartada Das emboscadas que lhes criam dia após dia
E dá-me vontade de ser vento Que os açoite até à consciência E dá-me vontade de ser chuva Que os acorde até se levantarem E fico trémula com as minhas armas débeis Feitas de letras e símbolos A pensar-me luz e a ser sombra A querer ser bandeira, abraço Mão aberta, mão estendida, mão erguida E a ser noite de dor e desilusão Vela de esperança bruxuleante Num horizonte negro Em que ninguém já aposta Liberdade
Às vezes o dia é grito Outras é silêncio Às vezes é berço E outras é túmulo Das emoções que escorrem Nas asas furtivas das horas Que nos cingem Mas não agarramos
Às vezes o dia é sangue Mordaça de sentimentos Medos que nos fazem abrigar Aos cantos de nós Num desespero de fera ferida A estremecer numa teia Que tecemos sem dar por isso Enquanto procurávamos a luz
Às vezes o dia é fel É desilusão de um nunca acabar Que exila da nossa vontade A crença pagã nos ciclos ancestrais Que deixámos pelos caminhos
Às vezes é-se areia Quando se quer ser rocha Lágrima Quando se quer ser sorriso
Nas minhas gavetas desordenadas Perdura um cheiro a mofo húmido Dos sonhos guardados há muito E as traças alimentam-se da poeira Que era mágica Alfazema da vontade esquecida Alecrim das promessas quebradas Madressilva das ternuras amarelecidas Rosmaninho das tranças brilhantes De outrora
No meu roupeiro imenso Pululam lado a lado Numa intimidade de memória Os meus anos de abelha, de borboleta De pássaro inquieto a picar O que eu pensava ser o azul do céu E os meus momentos felinos Guiados pela febre de outros cheiros Numa demanda ao luar dos encantos Numa urgência de me eternizar Noutros genes geradores de outros ciclos Outras verdades, outras direcções
A porta aparentemente aberta do meu quarto Esconde trancas indecifráveis Códigos armadilhados Pensamentos amotinados, cruéis Desejosos de cercar, eliminar O que não podem conter Numa rejeição construída no tempo improvável Duma meditação pagã
Por isso, o meu quarto É toca, é antro, é covil É mortalha cálida Para as minhas horas Inacabadas