Infância III
A escola
Era aquela sala de aula sóbria
Com as carteiras de madeira
Onde nos sentávamos
Com as nossas batinhas brancas
Bem engomadas
A professora
Era aquela senhora lá bem à frente
A falar do estrado,
De ponteiro espetado no quadro
Ou de régua na mão
Até o recreio, era regrado
Não podíamos bater nas outras,
Nem dizer asneiras;
Havia sempre alguém
Que nos denunciava os ímpetos
Hino Nacional ao sábado
Terço às quatro da tarde, diariamente
Lavores, depois do almoço
E leite em pó ao lanche
Com o pão barrado de manteiga Primor
Ou marmelada caseira
Não sabíamos, o que era pizza ou hambúrguers;
Tínhamos de engolir a sopinha até ao fim
E pôr os cotovelos na mesa
Ou deixar comida no prato,
Era punido, como se tivéssemos assaltado o banco
Ana Wiesenberger ( in IDADES)
Imagem - Edward Lamson Henry
A angústia é a lepra
Que alastra nos nós dos dias
Que transforma as minhas horas
Em borbotões de dor
Incapacidade de estar
Só
Com os outros
Moinho de pás de coveiro
A aliciar-me para precipícios fatais
Nas areias movediças em que o meu querer
Agonia
Num Requiem silencioso
A gotejar sangue e lágrimas
Que ninguém vê
Nas súplicas dos meus olhos lassos
Vazios de horizonte
Ana Wiesenberger
26-07-2013
Imagem - Edvard Munch
Depressão
Manto triste
Que te abates sobre mim
A qualquer hora do dia
Leito frio de angústia
Onde repouso o meu corpo
Quando a noite cai
E eu cumpro o ritual da passagem
Sem vontade de me erguer
Na manhã seguinte
Amanhã
Será o mesmo
Tomarei os comprimidos
Fingirei que as coisas fazem sentido
Farei os gestos
Darei respostas
Farei, até perguntas
Esboçarei sorrisos
E à noite regressarei
Ao exílio de mim
Ao meu silêncio
Ao meu vácuo
Ana Wiesenberger
03-04-2005
Imagem - Edvard Munch
Fuck all the time I’ve been wasting
Fuck all the washing up and the dirt itself
Fuck all the tidying up and cleaning up
Fuck all the dust and the dusters, the cleaning sponges
And all
Fuck all the minutes and the hours
The memoirs of books and things I read
Fuck all the hopes and the ambitions
Of what I once felt I was
Fuck all the joy and the excitement
Of getting good grades and being recognized
By myself
By the others
By the daily routine of the Gods
Fuck it all
Fuck it for good
Fuck! There’s nothing here to remind me
Of what I once was
What I once knew
What I once wanted
And this is my fucking story
How fucking disappointing this is!
Ana Wiesenberger (18-11-1994)
Imagem - Arthur Hughes
Detesto os traseiros gordos
Conformados, afivelados
Entre cupões de promoção
De supermercado
E telenovelas depois do jantar
Detesto-os quando passeiam
No parque
A empurrar carros de bebé sorridentes
Crianças bem vestidinhas
E bicicletas de rodinhas
Com homens a condizer
Ao lado
Detesto-os no masculino
E no feminino
Na arrogância da sua pobreza
De espírito
Nos vincos das calças certinhos
No passo de procissão
Para o café
Em tarde de Domingo
Detesto-os na alegria gordurenta
Dos almoços depois das compras
No Mac Donalds
Nos planos do jantar em casa da mãe
Ou da sogra
Nas conversas animadas na esplanada
Nas frases repetitivas
Nas emoções dos remates e das perícias
Do futebol
Detesto-os porque não pensam
Nem querem pensar no seu país
Não intervêm na vida cívica
Não lêem os jornais
Votam à toa ou à tona
Dos seus iguais
E condenam-nos à miséria
À corrupção
Ao enterro da economia
Ana Wiesenberger
Imagem - George Grosz
Os espasmos da madeira
Na casa velha
Trazem à minha mente
Sorrisos sorrateiros de prazer
Do tempo em que o meu corpo
Era uma fogueira
Sob o teu vento de me possuir
Em vendaval
As horas passavam por nós
Como pinhas doces
Consumidas no nosso lume
De pernas, braços e bocas
Por descobrir
Na vertigem febril de nos fundirmos
Num ídolo pagão
Das eras que não conhecemos
A nossa alegria breve de primeiro cio
Abria-nos leitos em todos os espaços
Em todos os cantos
Em que nos podíamos roubar
À presença dos outros
Ainda sinto a água escura
A abençoar a nossa juventude
A areia fria a arranhar-me a pele
O riso feliz de não encontrarmos
As roupas
Mergulhámos um no outro
Desde o dia
Em que nos definimos
Como homem e mulher
Às apalpadelas um no outro
Em busca dos ecos de prazer
Mãos aprendizas na arte de tocar
Fazer eclodir arrepios de êxtase
Depois, com a destreza amadurecida
Na confiança de um mapa partilhado
Sem fronteiras e limites de conveniência
Rendidos à beleza dionisíaca da paixão
Hoje, já decerto, que nenhum de nós
Consegue estremecer como outrora
Mas, talvez, qualquer coisa banal
Também lhe leve a memória bela
E quase envergonhada
Do tempo em que éramos jovens
E sabíamos amar
Ana Wiesenberger (in Erotismus, Impulsos e Apelos)
Imagem- Donna Norine Schuster
Há pessoas tão queridas
Tão politicamente correctas
Gostam de animais, claro
Não o suficiente para os terem em casa
Bem entendido
As responsabilidades, a prisão nos movimentos
Das suas vidas tão cheias, tão interessantes
E eu fico a pensar
Se reflectiram sobre o uso escasso dos seus óvulos
Dos seus espermatozóides elitistas e raros
Será que também pensaram
Se iriam ter tempo para a prole
Daí eventualmente resultante
Se conseguiriam roubar às suas actividades medíocres
Um raio de luz para as crianças
Estou convencida que sim e que não
Estes seres tão grandiosos, tão menores
Tão diminutos na escala da evolução
Na estatura espiritual
Nem compreendem nada
Para além do egoísmo
Do cumprimento das linguagens de repetição
Dos ecos e da litania do que sempre respiraram
Na harmonia dos seus
Ana Wiesenberger
18-07-2013
Imagem - George Grosz
Agarrar na caneta e escrever
Fugir em cada palavra
Numa fúria doida de explodir
Numa mordaça fechada, inútil
De carcereira reformada
À procura de estímulo
Só os aparos me prendem
Talvez, as folhas também
As das árvores e das outras
Interrogo-me em momentos simples
Sobre a latitude da proximidade
Diferenciada
Como se isso, fosse importante
Importantes são as árvores
Que as sustêm
E a tinta errante pelos espaços brancos
A construir um poema
Ana Wiesenberger (in Corredores)
25-11-2003
Imagem - Jamie Wyeth
Fuck all the time I’ve been wasting
Fuck all the washing up and the dirt itself
Fuck all the tidying up and cleaning up
Fuck all the dust and the dusters, the cleaning sponges
And all
Fuck all the minutes and the hours
The memoirs of books and things I read
Fuck all the hopes and the ambitions
Of what I once felt I was
Fuck all the joy and the excitement
Of getting good grades and being recognized
By myself
By the others
By the daily routine of the Gods
Fuck it all
Fuck it for good
Fuck! There’s nothing here to remind me
Of what I once was
What I once knew
What I once wanted
And this is my fucking story
How fucking disappointing this is!
Ana Wiesenberger (18-11-1994)
Imagem - George Grosz
Deito-me na cama vazia
E entrego-me ao silêncio
Não há ecos
Não há sombras
Não há braços, nem pernas
À espera de mim
O meu corpo molda-se aos lençóis
E enrola-se no sonho
Na maresia do desejo de te ter
De te encontrar
Aqui na penumbra do meu quarto
No sossego das minhas vozes
Na tempestade do meu ser
Sedento de ti
Abro os sentidos em mim
Devagarinho, como quem abre
Uma porta antiga, selada de tempo
E deixo-te entrar
Sorrateiro e imponente
Na tua dimensão emprestada
À minha fantasia
Sinto o teu peso sobre mim
A deslizar num movimento febril
E o teu rosto indistinto de sépia
Numa moldura de outro século
Liberta-me em espasmos doloridos
Resgata-me da minha solidão
Para me levar contigo
O Amor franqueia todas as cancelas
A eternidade é o momento
Ana Wiesenberger in Erotismus – Impulsos e Apelos
Imagem - Lauri Blank