Na minha vida deixei-me abraçar Por patas e páginas Cães, Gatos Livros, jornais, revistas Cadernos meus em que mergulhei Emoções Em que tentei encadernar a minha solidão Endémica
Houve sempre mãos a quererem-me tocar E eu a querer ser tocada Aprisionada na torre do meu ser Sem me conseguir libertar Sem me conseguir dar A ninguém
Todavia, sinto com tanto fervor O Colectivo; as vozes feitas de terra Sangue e Dor Os desprotegidos, os segregados Pela amoralidade dos sistemas Pela indiferença confortável Dos que juraram viver bem Num quadrado bem definido De presunção e concepções estreitas Fechadas à dinâmica do crescimento Da elevação do percurso humano
Na minha vida, restam-me as palavras Para chegar aos outros e a mim E às vezes, quando o sol se põe E a noite me enlaça numa exteriorização Da minha amargura, da minha escuridão Olho o céu através da cortina das minhas lágrimas E procuro nas estrelas longínquas Todas as vozes e os cheiros amigos Que já se apartaram de mim
Ontem foi 15 de Agosto, feriado no meu país Dia de festa celebrado pelo povo com alegria Já de véspera em bailes de aldeia e lugarejos Adros de igreja enfeitados, ajeitados de flores Coloridos de bandeirinhas de papel vistoso E vozes de cantores célebres na rota assinalada Pelos palcos de Verão das redondezas
E veio-me à memória madura, as minhas andanças Do Aquele Querido Mês de Agosto Em que a minha prima do campo, da mesma idade Que eu Me traduzia as manobras e os requebros dos rapazes Lá do sítio Como se brincássemos, ao Rato do Campo e o Rato Da Cidade
Naquela altura, o mundo dela, ainda era pequenino E dominava com requinte de guarda-livros Os nomes de família deste e daquele A fortuna velha ou nova Os percalços da sorte afectos aos rostos e aos bens O idiolecto apropriado, a cortesia e a leveza Com que a todos encantava
Eu perdia-me por entre tantas referências Achava graça a tudo Ria a despropósito Pintava os olhos, punha batom E dançava com quem não devia
Hoje, ela vai às compras a Itália todos os anos Para se distrair Telefona-me em pânico do hospital Uma cirurgia estética na manhã seguinte Que vai fazer E eu que tenho o corpo e o rosto da minha idade Tranquilizo-a e alimento-lhe o ego sensível Falo-lhe dos bons resultados das anteriores E ela, já mais calma, embala o medo de ficar velha E feia com o do bisturi E adormece a sonhar que tem quinze anos E o coração de todos os varões em redor Que vale a pena conhecer
Tem uma herdade enorme e outros punhados de terra Em que pensar Três filhos, um marido que a adora e lhe venera todos Os caprichos Depressões recorrentes, crises de ansiedade, de fuga De espiritualidade confusa Ruma a Fátima em oração, reúne-se com os outros Peregrinos Jura estar no caminho da Salvação Faz ioga, engole tranquilizantes, antidepressivos E agarra-se à vida com a mesma convicção Com que em adolescente guiava tractores nas vindimas E galopava sedutora Sob o olhar atento dos vizinhos
Os Cavalos a Correr As meninas a Aprender Cabra-cega de sonhos Bonecas mutiladas Roupas sujas Sapatos gastos Dos embates em pedras Insuspeitáveis Fitas do cabelo desbotadas Das horas em que as crenças Foram fiadas Do vão da escadas Onde príncipes autistas Foram aguardados Da luz alegre do candeeiro Sobre a cama infantil Que sem darmos por isso Se fundiu
Os Cavalos a Correr As Meninas a Aprender Qual será a mais bonita Que se irá esconder
Patamares de estupefacientes Rostos impávidos de vazio Mãos pardas de tempo Carrinhos de rolamentos desfeitos Em acidentes absurdos Na calçada da vida
Os Cavalos a Correr As Meninas a Aprender Qual será a mais néscia Para o monstro comer
Pénis-espadas Gravatas-nó de forca Casas de bonecas abortadas Na escuridão dos pensamentos
Os Cavalos a Correr As Meninas a Aprender Torres invisíveis Sangue, Sémen Nascimento, morte Tranquilidade com vista Para lápides limpas Promontórios de fins apetecidos Á sombra-mãe das árvores
Nós fazemos contas Nós pagamos contas Eles põem e dispõem Do nosso esforço Do nosso dinheiro Das nossas insónias Dos nossos medos Da nossa identidade Da nossa incapacidade De criar novos rumos
Eles gozam o astro-rei Em qualidade Em destinos que nunca vimos Nos nossos sonhos aprisionados Pelas contingências básicas Comer e alimentar os nossos filhos Orgulho feito de sapatos em condições Livros e malas para a escola Um perfume, um jantar num restaurante simples Em dia de aniversário lá por casa
Eu não turisto Tu não turistas Eles turistam
E constroem no ócio descontraidamente Mais patranhas com que nos vão enganar Mais redes com que nos vão apanhar Mais becos grotescos onde nos vão afundar E nós consentimos
E mentem-nos nos propósitos ínvios E adulteram a justiça E escondem mais e mais esquemas E nós consentimos