O dia já entrou pela janela É preciso agarrá-lo, abocanhá-lo com força Seguir a estrada aberta diante de nós Acompanhá-lo no pulsar das direcções Na indecisão das horas turvas Nos esgares repentinos do seu rosto E fazê-lo nosso de direito Talvez, também, de dever É crime, não reconhecermos em cada madrugada A dádiva de estarmos vivos E podermos participar na dinâmica do mundo Tocar o sentido das coisas Ser e estar Não como uma folha perdida Levada pelo vento Mas como tronco, raiz, braço imponente de Deus A fazer acontecer no tempo e no espaço Marcas do que somos, pedaços da nossa capacidade De interiorizar e exteriorizar o fluxo do devir Ana Wiesenberger (in Corredores ) 18-02-2014 Imagem - Augustus Edwin John
As pessoas sós vivem no silêncio
Ou no ruído impessoal
Nas vozes que moram no radio
E na televisão
Na harmonia da música
Que escolhem ou não escolhem
Mas escutam
Em horas improváveis ou não
As pessoas sós vivem, às vezes
Em bairros virtuais
Onde as campainhas são teclas
E as saudações, ícones engraçados
A abrir e a fechar sorrisos
E abreviaturas cómodas
Que nada querem dizer
Mas a que se habituaram
As pessoas sós
Procuram outras pessoas sós
Para se sentirem acompanhadas
E depois surpreendem-se
Pelo passo vão
Pela distância insuperável
Abissal
As pessoas sós desaprendem
A companhia
Mumificaram no eu
Os outros ecos
Exilaram-se do toque humano
Deixam cair as mãos ao longo do corpo
Numa higiene de separação sem ponte
Isenta de abraço
As pessoas sós
Coleccionam muitas noites de vácuo
De lágrimas, talvez
E acostumaram-se a dar uma volta pela casa
Antes de recolher ao leito
Precisam de verificar portas, janelas, botões
De electrodomésticos
Antes de fecharem o dia
Com uma pressão brusca no interruptor da luz
E a esperança que o sono lhes traga o sonho
Do que não conseguiram ser
Ana Wiesenberger
11-04-2013
Imagem – Ray Caesar
Livros
Papéis pintados, talvez
Telas vivas de cores e cheiros
Que abrimos e fechamos
Ao sabor da nossa apetência
Feita de tempo e de vontade
Livros
Companheiros fiéis na nossa solidão
Exorcismo estilizado do nosso medo
De enfrentar o vazio
Livros
Que nos seguem nos percursos
Nas malas do tempo já consumido
Nos momentos entreabertos a tecer desejos
De plenitude
Nos outros que nos deixam confusos, perdidos
Às avessas de nós
Livros
Que oferecemos, como se fossem mensageiros
Do nosso sentir
Que guardamos na memória esbatida
Fios distintos entrelaçados na tapeçaria singular
Construída pelas nossas escolhas, as nossas viagens
Num emaranhado de sedução feito de títulos e capas
Lombadas com nomes que nos chamam em sussurro
Que nos convidam a ver a vida através de outros olhos
Noutros palcos distantes da nossa realidade
Livros
Que nos transtornam
Que nos despertam
Que nos libertam da apatia
Que nos abraçam na hora de Morfeu
Que nos convencem a ser iguais
Sendo únicos
Ana Wiesenberger
07-02-2014
Imagem- Gerrit Van Vucht