Ao deambular por Sesimbra invade-me A estranheza de ter entrado numa casa de espelhos Esforço-me por não olhar em redor Concentrar-me no momento presente Todavia, é quase impossível ignorar A unidade fragmentada
Oiço-me adolescente por entre a família A atrasar o pedido do almoço no restaurante Por não gostar de comer isto ou aquilo Ou a perguntar detalhes quase absurdos Sobre o modo de confecção dos pratos
Vejo-me a respirar uma juventude Conscientemente rebelde e sedutora Entregue à dança sob os reflexos cromados Do tecto da discoteca
E depois, ainda a outra, já mulher Ao jugo da carreira e da maternidade submetida A tentar conciliar a obediência à responsabilidade E a liberdade interior A sentir o sonho afastar-se devagarinho
E por isso, quando aqui estou Passo por mim em cada canto Suporto paciente o peso da dor Vivo o crime e a automutilação da alma, do ser Já sem revolta, só tristeza feita de xaile à beira-mar Num cais que outrora devia ter abandonado
Janelas de sol descobrem no casamento cinzento Do céu e do mar Rasgos de luz e beleza a quem o rugir das ondas Empresta interstícios indecifráveis de raiva e dor Num concerto monumental acontecido E sempre novo sob a ogiva da terra mãe Doce alento que me dobras na desesperança Na fealdade fútil dos dias O encanto da maresia ancestral que sou eu E me deslumbra numa promessa de unidade perdida Num regresso sempre temido Sempre desejado
Estou cansada de memórias De salas de espera arrumadas em cubos Como aquários de grilos sibilantes
Já mandei calar o Watson e o Sherlock Holmes Disse ao Eça que fosse govarinhar para longe E ao Brecht que fizesse uma revolução
Eu estou fatigada de ecos dentro e em redor de mim Já não encontro chaves à espera que eu lhes pegue Já não distingo a Fada Boa da Má E desisti de ir até Oz
Vou desintegrar-me em palavras vãs e audiências A condizer E fingir-me leda, completa, toda adaptada ao vazio Das vozes que me estreitam pretensamente perto E cada vez mais longe de mim
Vou exilar-me nas montanhas do sono e do sonho Onde a beleza ainda acontece e eu não tenho frio Nem fome de ser e estar Onde os seres pequeninos são mestres e sábios E sabem ouvir e ensinar Onde não há espaço para mentiras ou inverdades Onde a transparência das almas se entrelaça Numa harmonia expansiva de um arco-íris sem par E ninguém precisa de se justificar Para existir
Na cabeça vazia pesam-me as vozes Que não consigo escutar Oiço-as já, só como ruído, perturbação Do meu silêncio arrebatador
Quebram-se nas pontes os pilares dos sentidos A que me agarro em vão E despenho-me numa imensidão de incerteza Aguarela tépida a esfumaçar fios tremendos De tempo e tempos por adivinhar São cruzes ou são corvos Que os meus olhos cansados descobrem No horizonte tenaz da minha paisagem interior
Não consigo agarrar os contornos das coisas As muralhas são redes envenenadas por medos Dos ecos dos meus fantasmas febris
Os olhos dobram-se sob o peso dos séculos Catedrais dispersas de Deuses reais e irreais Que me rasgaram o peito em preces absurdas
Escuto agora a água a cantar numa fonte qualquer Que ainda sangra dentro de mim Centopeias melodiosas de sonhos