A chuva copiosa bate na minha janela E desata deste lado da vidraça Uma explosão de desejos Surgem piqueniques de livros Saltam as tampas das caixas dos bombons O radio assalta-me com um trecho da Flauta Mágica E a gravura a lápis de cor de Kokoschka Liberta os cantores imprevistos na minha sala
Foi-se a vontade de trabalhar Subiu no ar uma fragrância hilariante Que anima em mim resquícios de Alice à hora do chá Na deliciosa companhia do Coelho e do Chapeleiro Louco
E depois ela pára subitamente Sai da minha cabeça para ficar só lá fora e ser chuva trivial E eu volto à quietude do meu espaço com olhos de Dorothy De regresso ao Kansas A tentar convencer-me que a magia está dentro de nós E podemos sempre procurar o caminho para Oz Quando sentirmos a pequenez sufocante do nosso quintal Vedar a nossa alegria de sermos pássaros coloridos
O pássaro A quem se jura amar Por lhe proporcionar uma gaiola imensa Também testa com a dor das suas asas cortadas Os limites da sua pretensa liberdade
Canta. Não canta Come. Não come Inquieta-se como se o gato Que não vê, já o tivesse devorado Como se habitasse o interior desse gato medonho Que o engoliu inteiro E não lhe deu o tempo necessário Para perceber que estava morto
O pássaro Muda de poleiro Para cima, para baixo Pára. Escuta o silêncio Será silêncio ou um rumorejar de algo Que não conhece Talvez as batidas apressadas do seu coração Que afinal não morreu Que afinal ainda amanhece transparências húmidas Nas árvores que nunca viu Nem sentiu Ou serão remoinhos de sonhos emprestados Que alguém depositou na sua gaiola amortalhada E esquecida Como uma folha de Outono Abandonada num trilho distante Do parque ameno Onde as famílias fazem que conversam E julgam que são felizes
Foi à cozinha Abriu a gaveta dos talheres E colheu a sua faca preferida
Ligou a música na sala Sentou-se e aproximou o gume perfeito Da epiderme suave do seu pulso Fê-lo deslizar por um instante E viu o fiozinho de vermelho vivo Assomar-se tímido Uma janela ínfima no moreno da carne
Depois ergueu-se, já na convicção firme Da descoberta dos seus desejos íntimos Há muito baralhados Dirigiu-se ao escritório dele Deparou-se com a ordem das estantes; Décadas e décadas de música catalogada Um rigor de cientista coleccionador de órgãos Amostragens de patologias organizadas Ao longo de uma vida de dedicação e esmero
Respirou fundo e lançou-se ao trabalho Passou a noite a abrir as caixas dos CDS E a desenhar com a faca metódica Um Z que lhe apareceu natural e espontaneamente Como se bramisse a espada de Don Diego de La Vega Numa promessa de justiça cumprida
Antes de fechar a porta, pousou os olhos no jornal dobrado E achou por bem, deixar-lhe um sinal Um prenúncio de inquietação - um aceno breve E enterrou nele a faca copiosamente Até o transformar numa saia de tirinhas de letras Que uma criança poderia querer usar Para se divertir com os amigos Num dia de Carnaval