Todos somos árvores Diz Raul Brandão em Húmus E se assim for, em vez das sete idades Do Homem de Shakespeare Assumimos as quatro estações Num calendário de vida
Como se a infância fosse a alegria Da Primavera a despontar em nós Uma multiplicidade de capacidades Um rompimento verde a ganhar forma
Depois, na euforia do Estio Já somos frondosas, vitais E apetecíveis Num esplendor de querer adulto A amadurecer horas que parecem Intermináveis
E contudo, o Outono apodera-se de nós Aos poucos, sorrateiro E transforma o nosso viço Numa paleta mirabolante de ocres e castanhos Que se despedem de nós numa carícia breve Para abraçarem o solo
E por fim, a invernia consome-nos com ventos Frios em hastes secas, tristes Doentes terminais saudosos de Sol Já destinados ao mundo das sombras
Mas o ciclo da Natureza perpetua-se E as árvores, ao contrário de nós Renovam o alento quando o tempo voltar a aquecer Nós só o poderemos alcançar nos resquícios Do nosso sopro na vontade dos que amámos E foram próximos de nós
As pessoas sós passam o tempo A deslizarem interminavelmente Pelos corredores dos seus pensamentos Construídos na ausência, na exclusão Dos ecos das outras vozes Que talvez desejassem perto, às vezes
Arrastam cada detalhe com cuidado Como se pisassem vidros finos E cada novo trilho é sempre a procura Do indefinível na trivialidade da aparência Dos factos quotidianos
Erram os olhos numa distância íntima Entre sombras e prenúncios de formas Que deslindam com vagar Como se caminhassem à beira-mar Numa demanda de conchas pequeninas Suspensas numa filigrana de espuma breve
E quando lhes acontece estar entre os outros Desatam esgares em vez de sorrisos Desajeitadas, distraídas dos gestos convencionais Mal articuladas em frases soltas Num trapézio de expectativas vãs De se verem compreendidas
E depois regressam ao seu espaço Calçam os seus passos inseguros de exterior Com as pantufas de feltro velho dos seus sonhos E aninham-se na poltrona puída de uma saudade Singular a tecer fios novos para a sua teia Com a consciência triste de ser aranha e mosca Em simultâneo Num conluio de estranheza
Hoje ouvem-se os pássaros a cantar E há sol, por isso é Primavera Amanhã talvez seja Inverno como ontem Ou Primavera como hoje No norte da Europa vive-se esta incerteza Nos dias
No sul é diferente O mal-estar esconde outras razões mais profundas É a fome, o desemprego, a raiva perante a injustiça E também a mornidão Tanta gente que não vê ou pensa Ou não quer ver, nem pensar Porque é incómodo ou porque a realidade os levaria A subtraírem-se ao medo de agir E o desfiladeiro derradeiro lhes acenasse com a força Com que nunca viveram os dias
Os pássaros continuam a cantar Algumas raparigas nigerianas já foram resgatadas Há muitas ainda para recuperar Na Nigéria longínqua, na Ásia distante E nas gaiolas dissimuladas do velho continente Tão civilizado e tão cruel
É melhor recordar Shakespeare em MacBeth Não nos entreguemos a tais pensamentos São de enlouquecer E porém, o leque das horas abre sempre mais Recantos esconsos que pretendemos não ver E vemos com os olhos petrificados de angústia Com ânsias de erguer tempestades Fazer acontecer mudanças Colorir o espaço com o punho individual Finalmente útil Finalmente humano