Obrigada, Sol Porque me aqueces E dissolves com amor O frio que me inunda a alma
Obrigada, Vento Porque me sacodes E me libertas do entorpecimento Com que a depressão me ameaça
Obrigada, Chuva Porque me despertas Quando sulco as ruas Ausente de rumo e sentidos
Obrigada, Neve Que me envolves em beleza E espalhas a magia em redor Por que os meus olhos anseiam
Se eu fosse tempo Seria nevoeiro, glaciar Ou tempestade Mas como sou mulher Solto o meu temperamento cíclico Em lágrimas, gritos e fúrias infernais Nos dias em que não consigo Ser apenas sorriso
Há alturas em que temos de parar de ser Para sentir Arrumar o corpo num sítio, aquietá-lo Imobilizá-lo e permitir que o olfacto E a visão suturem o vazio instalado
Suspender a inquietude da afirmação do ego Atar a leveza da borboleta a uma pedra E esperar pela profundidade do musgo Dos nossos pensamentos mais íntimos Sempre ocultos nos passos desaustinados De um quotidiano febril em que se faz O que tem de ser feito Em que se olvida o querer A voz subterrânea cada dia mais amordaçada Sufocada pela realidade invasiva A anular o que há de singular em nós
De tantas pontes construirmos Para chegarmos aos outros Esquecemo-nos da necessidade de olharmos Para dentro e lermos a nossa verdade Que pode não ser admirável, qual obra de arte Mas é a nossa raiz, a nossa marca Que nos distingue dos outros A nossa respiração
Entre patas e garras de amor Repousam meus afectos contínuos E enormes de ver
Entre focinhos e pêlos fofos Refugio o meu rosto do mundo Na hora do amor
Faz-me tanta falta o miar e o latir Que já não oiço Os dentinhos agudos, brincalhões A ameaçarem carinhosas proximidades À minha pele triste Num esboço de dentada Feito de ternura
A minha memória é uma galeria de cor E de cheiros Sepultados pelos caminhos que o tempo lavrou Todavia, mais reais que o ar que respiro Que me devia nutrir de capacidade Para amar este mundo imperfeito Em que tudo é o que não é E parece ser outra coisa ainda Que nem linda é
Obrigada, meus amigos de sempre, para sempre Por terem franqueado o cerro do vidro fosco Em que me tornei
Obrigada por não me permitirem fechar a porta Do ser, do sentir e do partilhar
Obrigada por me embalarem na harmonia Na sabedoria ancestral dos vossos gestos
Setembro dos ocres misteriosos A surpreenderem-nos pelos caminhos Por entre o calor do sol E o sal do mar que apetece Agora mais do que nunca Porque sentimos a ânsia de prender o Verão Não permitir que ele parta E leve consigo as horas despreocupadas Que vivemos Os risos das crianças, os olhares cúmplices Dos apaixonados libertos do jugo do trabalho Para amar
Setembro das minhas memórias doces De juventude Mãos enlaçadas em passeios inocentes ao pôr-do-sol A desenovelar sonhos por cumprir Destinos difusos ainda A ganhar contornos nas nossas vozes de esperança Nas nossas expectativas articuladas Na promessa que os adultos diziam ver em nós Ou não
Setembro do amor, da paixão natural Que tivemos de encerrar numa caixa de areia Por sermos néscios e acreditarmos Que os outros tinham razão Não era para cumprir E afinal, a vida reencontrou-nos em amizade De cicatrizes guardadas e esquecidas E eu penso nas horas pardas da minha meia-idade Que até estive com o Príncipe Encantado Mas não fui capaz de vestir a minha rebeldia de egoísmo E fiz-lhe ver, que eu não era a sua destinada Princesa
Na despedida trocámos prendas Tirei o meu colar de contas violeta do pescoço Ele despiu a camisola verde como a copa das árvores Que ambos sabíamos respirar Abraçámo-nos com olhos vítreos de dor E voz quebrada Em mim sempre o imperativo do verbo a ceifar o meu querer O meu desejo É melhor assim!
Ana Wiesenberger (02-09-2014) Imagem - Gustav Klimt