Estava cansada e fui até ao país das Histórias de Encantar Mas saí de lá ainda mais desencantada A Bela Adormecida queixa-se de insónias constantes Enquanto o seu belo Príncipe de outrora Faz ecoar os seus roncos expressivos por todo o palácio
Ela, que até, se tinha congratulado Com a sorte de ser estéril Lamenta agora o vazio dos seus dias Se tivesse tido prole Poderia entreter-se a dar colo aos netos E a correr as tendas dos artesãos Em busca de brinquedos perfeitos
A beleza, ainda a conservara muito tempo Mas depois, a anorexia deu lugar à bulimia E arruinou a linha esbelta da sua figura
Na porta ao lado, a cena não era mais animadora A Gata Borralheira sofre paciente e triste As artroses e as poliartralgias Herança das sevícias domésticas da madrasta Que longos anos perduraram
Continua meiga e afável com todos Queixa-se ao de leve da viuvez E da vida atarefada dos filhos gémeos Que trabalham na Wall Street da Avenida das Fadas
Quando a saúde lhe permite, dá festas de caridade Ajuda órfãos e viúvas carenciadas Inaugurou há pouco uma Associação de Protecção Animal Nuns hectares baldios de que não precisava Coitadinha, ainda me deu um frasco de geleia e biscoitos caseiros Antes de eu franquear a porta de saída
A Alice sofre de neurastenia grave E da esquizofrenia, que já na infância se tornara evidente Todos os dias manda abrir buracos no chão do jardim Quer regressar ao País das Maravilhas que nunca devia ter abandonado Mas não se lembra onde era o túnel da entrada Todos sabem, que não há nada a fazer Os físicos mais célebres e afamados dos quatro cantos do mundo Vêm vê-la a pedido da família, mas não a conseguem tratar
O Patinho Feio, que afinal era um cisne Não aguentou os traumas de criança E é um alcoólico desesperado Sempre com o olhar no vazio A balbuciar por entre os dias Que ninguém o entende Antes ou depois de meter o bico na garrafa
O Gato das Botas, então Deixou-me dilacerada A gangrena instalou-se lhe há muito nas pernas Mas ele teima em viver assim até ao fim E a carne vai-lhe morrendo gradualmente sob o pêlo Enquanto ele delira sobre os seus feitos de outrora
Hansel e Gretel estão bem Pelo menos, um com o outro A comunidade não aceita a relação incestuosa Mas eles pareceram-me muito satisfeitos E vi-os sorrir, cúmplices Ao mostrarem-me a campa dos pais nas traseiras
Foram extremamente simpáticos E nem me queriam deixar partir Todavia, rebentaram em mim, ecos de psicologia Aos solavancos E ao apanhar o fio transversal das relações de causalidade Entre vítimas e agressores Julguei por avisado, afastar-me dali Antes que eles me começassem a encher a pança com assados Doces e iguarias mais
O dia começa em bruma Resquícios de uma Alcácer-Quibir Sempre presentes Sempre por resolver A cortar, dilacerantes A pretensa paz por edificar em mim Horas possíveis de construção de sentido
As vozes do passado são muitas E os seus gritos sobrepõem-se ao presente Tornam-me impossível conciliar Os caminhos seguidos, ditados pela razão megera Que me algemou ao sofrimento constante Feridas abertas e purulentas dos sonhos sacrificados Eternamente cativos na cave da minha vida E só libertados em memória dolorosa Quando a tempestade me trespassa E me dá ganas de assassinar o real Por ser uma mentira torpe
O dia começa com um travo estranho, bolorento Que me causa náusea e me exila da vontade do suster Substância que o corpo sossegou numa agonia bafienta A amordaçar o espírito no Não-Ser E o único rumo, que ainda me resta É Ser através da tinta no papel amigo Aranha triste a um canto do tempo incerto A aguardar a morte na sua teia breve
Depois do jantar Na esplanada do bairro Entre conversas banais Cumprimentos aos vizinhos Acenos respeitosos de cabeça E sorrisos a condizer Fujo para outras noites diferentes Paragens longínquas de férias exóticas Intervalos da rotina que nos levam Pretensamente para longe de nós
E deixo chegar até mim Outras línguas, outras vozes alegres De uma boa disposição emprestada Pelo tudo incluído em oito dias de Caraíbas Encantos de palmeiras e mesas cheias de acepipes Frutas mil ao pequeno-almoço no terraço apetecido E areais dourados a vestirem o dia de encanto e calor
Todavia, não há manjares nem bebidas Que nos consigam exilar dos nossos fardos Tudo não passa de uma ida no carrossel da feira da infância Em que rejubilamos de magia e cor Sob a embriaguez da música alucinante Até ao momento em que ele pára E voltamos ao chão da realidade
Não sei, se foi o verbo nos teus lábios Que me prendeu o olhar, a atenção Ao teu porte carregado de ironia E distanciamento crítico pelas coisas
À frente do anfiteatro Antes e depois dos seminários Falávamos muito e a tua proximidade Apetecia-me de um modo diferente Difícil de catalogar
Talvez, não fosse bem isso Talvez eu me recusasse a fazê-lo Por recear, perder a dimensão Do que é sensato, normativo Ideal
No entanto, quando a idade avança E a memória dobra em nós A multiplicidade de momentos vividos Permitimo-nos, por vezes Vaguear para longe dos nossos pressupostos E resta-nos admitir a estranheza de tantos Eus Que fomos e deixámos pelos caminhos Unhas dolorosas que cortámos e voltaram sempre A crescer Na penumbra dos nossos esconsos Nos armários dos nossos quartos Que invadem a nossa vigília Quando apagamos a luz para descansar
Passos quebrados Rostos tristes Olhar nu de esperança Assim vai o meu povo Vergado a injustiças Sebentas do passado Renovadas, mascaradas Num registo de democracia
É preciso inventar um caminho Mas só a luz da clareza Da informação e da denúncia Nos poderão levar a outro rumo
Se permanecermos alheios aos conluios Nas trevas da incerteza e da indiferença Nunca seremos mais do que animais inocentes Condenados a destinos vis Sempre na rota de um matadouro imenso Onde desaguam a falência dos nossos sonhos E daqueles que nos são queridos
É fundamental, não cedermos ao cansaço E à dormência Que nos faz fechar os olhos na agonia De quem já sente Que nada vale a pena
O cinzento voltou Como se nos quisesse recordar Que o dourado do Sol na paisagem É uma bênção servida com parcimónia
Aborrecemos os olhos Na ausência da luz do Astro-Rei A paisagem já não nos prende Numa suspensão de euforia
Voltámos ao mundo dos objectos Uma cadeira, um livro, uma mesa O pó que nos submerge de mansinho E não vemos Os interruptores que pressionamos Enquanto deslizamos pelas divisões complexas Das nossas vidas Como se também accionássemos a nossa atenção A nossa concentração A nossa capacidade de realizar isto e aquilo Que temos de fazer Ou que nos convenceram a dar importância
Quando dormimos E os nossos olhos estão fechados É como se estivéssemos em modo off - desligados E quando os abrimos, passamos a estar em on - ligados
Quando morremos Ficamos de olhos escancarados e fixos O que prova, que não estamos a descansar Nem a funcionar Estamos perante o colapso do sistema Já não é possível ligar, nem desligar
Balanço-me entre dois mundos Duas línguas Duas paisagens Duas culturas Um regresso anunciado A algo em que não acredito Um recanto de uma casa de quinta Que era o paraíso dentro de mim E onde o jardim me convidava a ler Ou descansar sob a sombra amiga da cerejeira
Talvez os netos pulassem por entre o meu silêncio Talvez eles quebrassem o vidro da torre invisível Em que há muito me encerrei Talvez eles rasgassem em mim Véus de ternura e cuidado adormecidos Talvez na sala houvesse uma cadeira de baloiço À minha espera, junto à lareira nas noites de invernia
Mas não há tal casa e a cerejeira só permanece frondosa Nas latitudes do meu sonho de menina que nunca abandonei São errâncias do desejo, memórias fragmentadas de outros dias Rumos esquecidos, páginas viradas, queimadas sob o sol dos anos Nós que o tempo nunca logrou desfazer
Balanço-me intermitentemente entre fronteiras reais e imaginárias De braços humildemente estendidos para um horizonte indistinto Em que apenas quero ver futuro
Hoje é Halloween! Exorcizemos os nossos medos Sob o negro das máscaras Cortejo de bruxas e morcegos Gadanhas, garras e dentes exorbitantes De vampiro
Hoje é Halloween! No calendário Celta, fim do ano Pesemos as nossas dúvidas Encaremos as nossas dívidas Perante a condição humana Que vestimos A grandiosidade de Deuses Que almejamos
Hoje é Halloween! Façamos a paz com os nossos mortos Anulemos os rancores e os remorsos Permitamos, nesta noite, a proximidade indefinida Da Morte e da Vida
Hoje é Halloween! Tomemos parte na festa das crianças Que elas possam colher na hora aberta A dádiva da escolha do caminho Do doce e do amargo, do susto ou da harmonia Na convivência com os demais
Hoje é Halloween! As árvores despidas de folhas Que amolecem os nossos passos Anunciam com fervor ancestral A Morte e a Ressurreição da Vida
Ana Wiesenberger 31-10-2014
Imagem - foto tirada na biblioteca da minha escola há uns anos