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querotrazerapoesiaparaarua

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No País das Histórias de Encantar

db_Marina_puzyreva1

Estava cansada e fui até ao país das Histórias de Encantar
Mas saí de lá ainda mais desencantada
A Bela Adormecida queixa-se de insónias constantes
Enquanto o seu belo Príncipe de outrora
Faz ecoar os seus roncos expressivos por todo o palácio

 

Ela, que até, se tinha congratulado
Com a sorte de ser estéril
Lamenta agora o vazio dos seus dias
Se tivesse tido prole
Poderia entreter-se a dar colo aos netos
E a correr as tendas dos artesãos
Em busca de brinquedos perfeitos

 

A beleza, ainda a conservara muito tempo
Mas depois, a anorexia deu lugar à bulimia
E arruinou a linha esbelta da sua figura

 

Na porta ao lado, a cena não era mais animadora
A Gata Borralheira sofre paciente e triste
As artroses e as poliartralgias
Herança das sevícias domésticas da madrasta
Que longos anos perduraram

 

Continua meiga e afável com todos
Queixa-se ao de leve da viuvez
E da vida atarefada dos filhos gémeos
Que trabalham na Wall Street da Avenida das Fadas

 

Quando a saúde lhe permite, dá festas de caridade
Ajuda órfãos e viúvas carenciadas
Inaugurou há pouco uma Associação de Protecção Animal
Nuns hectares baldios de que não precisava
Coitadinha, ainda me deu um frasco de geleia e biscoitos caseiros
Antes de eu franquear a porta de saída

 

A Alice sofre de neurastenia grave
E da esquizofrenia, que já na infância se tornara evidente
Todos os dias manda abrir buracos no chão do jardim
Quer regressar ao País das Maravilhas que nunca devia ter abandonado
Mas não se lembra onde era o túnel da entrada
Todos sabem, que não há nada a fazer
Os físicos mais célebres e afamados dos quatro cantos do mundo
Vêm vê-la a pedido da família, mas não a conseguem tratar

 


O Patinho Feio, que afinal era um cisne
Não aguentou os traumas de criança
E é um alcoólico desesperado
Sempre com o olhar no vazio
A balbuciar por entre os dias
Que ninguém o entende
Antes ou depois de meter o bico na garrafa

 

O Gato das Botas, então
Deixou-me dilacerada
A gangrena instalou-se lhe há muito nas pernas
Mas ele teima em viver assim até ao fim
E a carne vai-lhe morrendo gradualmente sob o pêlo
Enquanto ele delira sobre os seus feitos de outrora

 

Hansel e Gretel estão bem
Pelo menos, um com o outro
A comunidade não aceita a relação incestuosa
Mas eles pareceram-me muito satisfeitos
E vi-os sorrir, cúmplices
Ao mostrarem-me a campa dos pais nas traseiras

 

Foram extremamente simpáticos
E nem me queriam deixar partir
Todavia, rebentaram em mim, ecos de psicologia
Aos solavancos
E ao apanhar o fio transversal das relações de causalidade
Entre vítimas e agressores
Julguei por avisado, afastar-me dali
Antes que eles me começassem a encher a pança com assados
Doces e iguarias mais

 

Ana Wiesenberger  (in Corredores)
13-06-2012

Imagem - Marina Puzyreva

 

 

O Dia Começa Em Bruma

Edmund Dulac - The buried Moon

O dia começa em bruma
Resquícios de uma Alcácer-Quibir
Sempre presentes
Sempre por resolver
A cortar, dilacerantes
A pretensa paz por edificar em mim
Horas possíveis de construção de sentido

 

As vozes do passado são muitas
E os seus gritos sobrepõem-se ao presente
Tornam-me impossível conciliar
Os caminhos seguidos, ditados pela razão megera
Que me algemou ao sofrimento constante
Feridas abertas e purulentas dos sonhos sacrificados
Eternamente cativos na cave da minha vida
E só libertados em memória dolorosa
Quando a tempestade me trespassa
E me dá ganas de assassinar o real
Por ser uma mentira torpe

 

O dia começa com um travo estranho, bolorento
Que me causa náusea e me exila da vontade do suster
Substância que o corpo sossegou numa agonia bafienta
A amordaçar o espírito no Não-Ser
E o único rumo, que ainda me resta
É Ser através da tinta no papel amigo
Aranha triste a um canto do tempo incerto
A aguardar a morte na sua teia breve

 

Ana Wiesenberger
14-11-2014

Imagem - Edmund Dulac

 

Depois do Jantar

14. Koulakov, Ivan - After Dinner

 

Depois do jantar
Na esplanada do bairro
Entre conversas banais
Cumprimentos aos vizinhos
Acenos respeitosos de cabeça
E sorrisos a condizer
Fujo para outras noites diferentes
Paragens longínquas de férias exóticas
Intervalos da rotina que nos levam
Pretensamente para longe de nós

 

E deixo chegar até mim
Outras línguas, outras vozes alegres
De uma boa disposição emprestada
Pelo tudo incluído em oito dias de Caraíbas
Encantos de palmeiras e mesas cheias de acepipes
Frutas mil ao pequeno-almoço no terraço apetecido
E areais dourados a vestirem o dia de encanto e calor

 

Todavia, não há manjares nem bebidas
Que nos consigam exilar dos nossos fardos
Tudo não passa de uma ida no carrossel da feira da infância
Em que rejubilamos de magia e cor
Sob a embriaguez da música alucinante
Até ao momento em que ele pára
E voltamos ao chão da realidade

 

Ana Wiesenberger
26-06-2013

Imagem – Ivan Koulakov

Não sei, se foi o verbo nos teus lábios

Head-of-a-woman-seen-from-behind - François Boucher

Não sei, se foi o verbo nos teus lábios
Que me prendeu o olhar, a atenção
Ao teu porte carregado de ironia
E distanciamento crítico pelas coisas

 

À frente do anfiteatro
Antes e depois dos seminários
Falávamos muito e a tua proximidade
Apetecia-me de um modo diferente
Difícil de catalogar

 

Talvez, não fosse bem isso
Talvez eu me recusasse a fazê-lo
Por recear, perder a dimensão
Do que é sensato, normativo
Ideal

 

No entanto, quando a idade avança
E a memória dobra em nós
A multiplicidade de momentos vividos
Permitimo-nos, por vezes
Vaguear para longe dos nossos pressupostos
E resta-nos admitir a estranheza de tantos Eus
Que fomos e deixámos pelos caminhos
Unhas dolorosas que cortámos e voltaram sempre
A crescer
Na penumbra dos nossos esconsos
Nos armários dos nossos quartos
Que invadem a nossa vigília
Quando apagamos a luz para descansar

 

Ana Wiesenberger
2013

Imagem - François Boucher

 

Passos Quebrados

The-Organization-of-the-Agrarian-Movement-1926

Passos quebrados
Rostos tristes
Olhar nu de esperança
Assim vai o meu povo
Vergado a injustiças
Sebentas do passado
Renovadas, mascaradas
Num registo de democracia

 

É preciso inventar um caminho
Mas só a luz da clareza
Da informação e da denúncia
Nos poderão levar a outro rumo

 

Se permanecermos alheios aos conluios
Nas trevas da incerteza e da indiferença
Nunca seremos mais do que animais inocentes
Condenados a destinos vis
Sempre na rota de um matadouro imenso
Onde desaguam a falência dos nossos sonhos
E daqueles que nos são queridos

 

É fundamental, não cedermos ao cansaço
E à dormência
Que nos faz fechar os olhos na agonia
De quem já sente
Que nada vale a pena

 

Ana Wiesenberger
21-08-2014

Imagem – Diego Rivera

Reflexões Assarapantadas

Testard Robinet

O cinzento voltou
Como se nos quisesse recordar
Que o dourado do Sol na paisagem
É uma bênção servida com parcimónia

 

Aborrecemos os olhos
Na ausência da luz do Astro-Rei
A paisagem já não nos prende
Numa suspensão de euforia

 

Voltámos ao mundo dos objectos
Uma cadeira, um livro, uma mesa
O pó que nos submerge de mansinho
E não vemos
Os interruptores que pressionamos
Enquanto deslizamos pelas divisões complexas
Das nossas vidas
Como se também accionássemos a nossa atenção
A nossa concentração
A nossa capacidade de realizar isto e aquilo
Que temos de fazer
Ou que nos convenceram a dar importância

 

Quando dormimos
E os nossos olhos estão fechados
É como se estivéssemos em modo off - desligados
E quando os abrimos, passamos a estar em on - ligados

 

Quando morremos
Ficamos de olhos escancarados e fixos
O que prova, que não estamos a descansar
Nem a funcionar
Estamos perante o colapso do sistema
Já não é possível ligar, nem desligar

 

 

Ana Wiesenberger
07-03-2013

Imagem - Testard Robinet

Balanço-me Entre Dois mundos

Marie Laurencin_paintings_artodyssey  (8)

 

Balanço-me entre dois mundos
Duas línguas
Duas paisagens
Duas culturas
Um regresso anunciado
A algo em que não acredito
Um recanto de uma casa de quinta
Que era o paraíso dentro de mim
E onde o jardim me convidava a ler
Ou descansar sob a sombra amiga da cerejeira

 

Talvez os netos pulassem por entre o meu silêncio
Talvez eles quebrassem o vidro da torre invisível
Em que há muito me encerrei
Talvez eles rasgassem em mim
Véus de ternura e cuidado adormecidos
Talvez na sala houvesse uma cadeira de baloiço
À minha espera, junto à lareira nas noites de invernia

 

Mas não há tal casa e a cerejeira só permanece frondosa
Nas latitudes do meu sonho de menina que nunca abandonei
São errâncias do desejo, memórias fragmentadas de outros dias
Rumos esquecidos, páginas viradas, queimadas sob o sol dos anos
Nós que o tempo nunca logrou desfazer

 

Balanço-me intermitentemente entre fronteiras reais e imaginárias
De braços humildemente estendidos para um horizonte indistinto
Em que apenas quero ver futuro

 

Ana Wiesenberger (in Corredores)
25-10-2013

Imagem – Marie Laurencin

 

Hoje é Halloween!

006

Hoje é Halloween!
Exorcizemos os nossos medos
Sob o negro das máscaras
Cortejo de bruxas e morcegos
Gadanhas, garras e dentes exorbitantes
De vampiro

 

Hoje é Halloween!
No calendário Celta, fim do ano
Pesemos as nossas dúvidas
Encaremos as nossas dívidas
Perante a condição humana
Que vestimos
A grandiosidade de Deuses
Que almejamos

Hoje é Halloween!
Façamos a paz com os nossos mortos
Anulemos os rancores e os remorsos
Permitamos, nesta noite, a proximidade indefinida
Da Morte e da Vida

 

Hoje é Halloween!
Tomemos parte na festa das crianças
Que elas possam colher na hora aberta
A dádiva da escolha do caminho
Do doce e do amargo, do susto ou da harmonia
Na convivência com os demais

 

Hoje é Halloween!
As árvores despidas de folhas
Que amolecem os nossos passos
Anunciam com fervor ancestral
A Morte e a Ressurreição da Vida

 

Ana Wiesenberger
31-10-2014

Imagem - foto tirada na biblioteca da minha escola há uns anos

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