Passei do Rigoletto a Cármen Sem que a Bela-Adormecida em mim Despertasse Um aceno de cisnes Um lago convidativo aqui e ali E depois, novamente o pântano O corvo a apoderar-se da alma A convicção profunda de ser pedra Estátua de um passado desconhecido Largada por entre a gente
O amor guardava-o em mim Em arcos de palavras Léxicos afectos a várias línguas Sonoridades belas, sedutoras Que me preenchiam os dias
E no entanto, procurava sentir mais Mas a proximidade dos outros Era imperfeita e mesmo transtornada Pelos leques das letras impressas Permanentemente presas nos meus olhos Que vergavam despedidas Ao conhecerem a voz dos meus lábios
E depois, tu vieste e compreendeste Que eu só podia, só sabia ser assim Miríades de fogo e melancolia Inquietação e fuga constante Para as pradarias das páginas Onde realmente vivia
Começo o dia a espiar as horas no relógio de pulso E a afastar a noite de dentro de mim Salpicos de vazio do ontem, ainda a estorvarem-me Na mira da Casa de Partida
A perna esquerda, pelo menos está viva Tenho a certeza porque me dói E desato a rir do absurdo de me lembrar Que o povo assume os ossos Como cérebros da meteorologia
Engulo o café, entranho o fumo do cigarro Mais um e juro, que me vou erguer da cama É domingo, aquele dia meio estúpido Que nem é início nem fim de semana É só uma voz inquietante a censurar-nos Por não termos aproveitado as horas livres Como devíamos E a acenar-nos com a segunda-feira dura de roer
É desta! Espreguiço-me O hálito esquisito ainda não convida a pequeno-almoço Mais tarde, daqui a pouco já como E vem-me à memória súbita, o tempo em que conseguia Deglutir uma tigela de cereais, logo ao despertar
O tempo é um escultor ou uma bomba química, hostil Que destrói as nossas capacidades? Olhamo-nos ao espelho e temos de lavar a cara Aquele estranho(a) diante de nós Para onde terá ido o meu rosto, o meu sorriso? Para onde terá ido a fome do meu olhar?
Gostava de ligar o número de um amigo Dizer-lhe, que dói Sem saber dizer, onde dói Sem ter de fazer acontecer Explanações ocas, metafísicas Falsas verdades vis Enceradas em bom senso E vontade de ser Qualquer coisa amena E exilar no negrume da noite Os morcegos da alma Eternamente presa de uma inquietude secular
Gostava de ouvir grinaldas de cor e afecto em arco-íris Alongados até mim desde o outro lado da linha Mas o tempo e o espaço são lugares que se entranham E nos convencem Que as portas não são para abrir
Escrevo perante o rosto da noite Num hotel que de tão familiar Me faz crescer em estranheza
Escrevo à luz do cansaço saudável dele Que lhe permite dormir sem químicos Virgem ao mundo dos fármacos Em que os outros existem em On e Off
Escrevo na companhia do vinho tinto do copo Que felizmente me dobra a loucura Me afaga a solidão E me diz, que devia encostar a cabeça à almofada Como se eu fosse um cabritinho jovem e desajeitado A quem a mãe explica a necessidade de descansar No verde da planície para aguentar a jornada de amanhã
Escrevo na voragem dos que não têm companhia Mas se fingem acompanhados pelas páginas dos outros A que se agarram, desesperados de mitigar a sede endémica Do deserto fabricado com a ausência consentida ao longo dos anos Em que se afastaram dos demais
Este é o murmúrio das horas paradas O rebuliço invisível do pântano Em que os nenúfares moribundos Nos pedem para calar os gritos de lodo
Esta é a noite que canta a uma só voz A canção daqueles que por si ou por destino São os desenraizados do bem-estar
De novo na estrada Ignoro a paisagem Um olhar de soslaio De quando em quando Ao ajeitar os óculos Ao acender um cigarro Baixar o vidro Para deixar entrar o ar
É sempre esta imensidão de asfalto A confundir-me as moradas De que me esqueci desta vez? A camisola preta com capuz E a alma? Essa vai pendurada na maciez do teu pêlo Aninhada em ti numa laçada profunda De náufrago determinado na missão de sobreviver
Mais um café, uma ida à casa de banho É espanhol ou já é francês o que aqui se fala E já com o desejo absurdo de ouvir alemão em redor Com um alívio de filho de divorciados em fim-de-semana No outro ramal da família que mora longe E que já tece na distância a maçada insuportável das malas E das horas desperdiçadas
Sempre na urgência de partir Sempre na urgência de chegar
Não me apetece ir Ir e Voltar Ir e voltar Neste exercício exímio Da arte de não estar em lado nenhum
Se vou, lá não estou Os pensamentos fogem-me para aqui Se venho, também não consigo ser real aqui Os pensamentos afastam-se numa corda entrançada Em dor
E assim, os dias correm Passa a vida, que não se tem Por entre a outra, que se vai tendo E os desejos sempre imensos e difusos Como lagos turvos de profundidades incalculáveis Tornam-se musgo na superfície autofágica E impenetrável de fé
A Páscoa era o almoço num restaurante rústico Com parque para a pequenada E jogo da malha para o meu pai e os outros As mulheres conversavam engomadas em vestidos novos E cabelos emproados enquanto descansavam os pés castigados Pelos sapatos ainda muito apertados nos banquinhos de madeira E lá iam vigiando as crianças por entre as rendas e as novidades Da semana
A Páscoa era a visita obrigatória aos afilhados As amêndoas e as prendas, os pratos atafulhados Folares, ninhos e fios de ovo a condizer com a promessa De renovação da vida
E depois, veio a Páscoa em que o borrego se transformou Em raiva e sangue dentro de mim Quando, ao regressar a casa, te encontrei inerte e fria E os restos guardados para ti com amor Se tornaram lixo e desperdício
Quando te enterrei Sei bem, que uma grande parte de mim Foi a enterrar Contigo
As décadas sucederam-se Mas desde então A Páscoa só me sabe a morte Não chega a assumir qualquer ressurreição Na minha mente não há ovos coloridos Que consigam tapar a imagem de um dos seres Que mais amei Só, hirta e fria