Porque não me percebes Porque nunca entendes As palavras que te estendo As frases que te dou
É tudo pueril É tudo supérfluo Não conseguimos abrir As nossas cabeças aos outros
As nossas emoções Os nossos medos A solidão a pesar sobre os ombros A angústia, o mal-estar a transtornar-nos o dia É como um anel demasiado apertado no dedo Que só talvez se aparte de nós Quando a vida também o fizer
Provavelmente nada é partilhável Talvez, sejamos todos Tão diferentes de tão iguais Tão isolados e tão estupidamente próximos Náufragos de ilusões Na nossa grande pequenez De querermos ser alguma coisa com sentido E ficarmos sempre aquém da meta Ou pior, remetidos a uma imbecilidade satisfeita De quem não se vê e se imagina grande A encher os olhos dos outros com uma admiração Que só existe na sua cegueira covarde
Se houvesse algo que pudéssemos partilhar Nos ecos dos dias Deixaríamos de ser estranhos Empacotados em embalagens semelhantes Nas prateleiras dispersas da mesma época
Como pode este dia De luta e dor De sangue derramado De angústia pelo que falta cumprir Ser apenas colhido Como um pretexto para convívio Entre amigos Com a bestialidade da ausência de consciência Servida em copos e pratos Grades para o que se passa em redor
Sei que as imagens da minha infância Já não se repetem Não há multidões a dispersarem de S. Bento Perseguidas pelos cassetetes da polícia E os cães instrumentalizados para induzir o terror
Mas o medo voltou com outro rosto O povo teme a espiral de perda crescente Destes últimos anos Os postos de trabalho, os direitos adquiridos Agora espezinhados, anulados, estropiados Pela hegemonia das altas finanças Pela especulação bárbara que só serve as minorias Engordadas com o nosso suor, o nosso esforço As nossas vidas malbaratadas Presas sem esperança nas malhas da corrupção firme Que não perece sob o punho da justiça
As mulheres e as crianças continuam a ser os mais fracos Salários mutilados pelo género Violência consumada entre portas Porque os seus homens covardes trazem a ira e a frustração Para casa, em vez de lhes dar voz na praça pública
As crianças mal alimentadas Sofrem no quotidiano o corte nos salários, o desemprego E as pensões irrisórias dos avós Hipotecam precocemente o futuro Depauperadas pelo mal-estar na família, tristes, revoltadas Incapazes de abarcar a aventura do aprender
Por isso, neste 1º de Maio Que muitos festejam além-fronteiras Exilados pela necessidade de sobreviver Talvez fosse apropriado, reflectirmos Será este o Portugal que desejamos ter?