Quando estou em Portugal, na grande cidade litoral
Acontecem-me remoinhos de saudade inesperados
Faltam-me os bosques da Alemanha
O silêncio dos caminhos
O sol português abraça-me e sustenta-me em pilares de luz
O mar embala-me com a sua ternura ancestral inesquecível
Porém, não sacia a minha sede de verde e mistério
Onde as ondas da imaginação crescem em histórias
A natureza humana condena-nos à insatisfação
Desaprendemos o nosso lado animal
Não sabemos saborear o presente
Se está frio, não se pode sair de casa
Se está calor, não se consegue respirar
Eu observo e admiro a graça com que os meus cães
Se entregam aos momentos do dia
Quando passeiam, apreciam a erva fresca, o solo gelado
Coberto de neve ou enlameado
Quando regressam ao lar, e se ninguém com eles brincar
Aninham-se junto a nós e desfrutam da nossa companhia
Mas os humanos nem nos afectos se satisfazem
Se estão com A, querem estar com B
Se estão sós, pesa-lhes a ausência
Se estão acompanhados, depressa se enfastiam
E assim, nunca estão onde querem estar
Nunca vivem como desejariam viver
Por isso, a morte nos deixa a todos de olhos abertos
Surpreendidos pela efemeridade da nossa existência
E quem sabe, ainda tenhamos um segundo de reflexão
Para lamentarmos o desperdício da dádiva da vida
Ana Wiesenberger
09-01-2017
Imagem – Amadeo Souza Cardoso
A astrologia não me ajudou
A ciência não me ajudou
Talvez, Deus tenha tentado fazê-lo
Porém, encontrou a minha distracção
E ela inviabilizou-lhe o caminho
E depois, com tantos bonzinhos por aí
A fazerem caminhadas de fé
Gulosos pela misericórdia e pela salvação
Deus deve andar muito sobrecarregado
Os cães têm-me ajudado
São incansáveis – os verdadeiros anjos
Que nos é dado sentir e confirmar
Há sempre novas feridas a desgraçarem
A epiderme da alma
Eles tentam curá-las com a força do amor
Porém, há quem já esteja para além de tudo
E se transforme numa chaga pútrida
Em verdade vos digo
Os tortos ficam cada vez mais tortos
E os direitinhos roubam-nos o direito
De estar à mesa da nossa existência
Como se a dignidade fosse um cinto
Que se comprasse nas lojas de marca
Divertem-se a expor o pus dos nossos dias
E dos nossos gestos
Para mascarar a pobreza das emoções das suas vidas
Tão falsas, de engomadas
Como a roupa e as decisões que vestem as suas horas
Resta-nos o ilusionismo dos desejos
As máscaras com que brincamos
Na alegria triste de sabermos
Que a cada passo, estamos mais sós
E mais perdidos
Frágeis como bolas de sabão
A enfrentar o vento das aparências
Ana Wiesenberger
16-09-2015
Imagem – Jackson Pollock
A tarde despede-se num sussurro
Melancolia das horas diurnas
Já entrelaçadas com a noite misteriosa
Que tudo envolve na sua negrura
E no seu silêncio
As árvores nuas cravam no momento
O desamparo da condição humana
Solidão cósmica que a razão esquece
Para viabilizar o cenário da vida
Ana Wiesenberger
Imagem – Van Gogh
Lentamente
Deixei o meu corpo deslizar até ti
Lentamente
Entreguei os meus desejos
Às tuas mãos ternas
Lentamente
Encontrei em ti
A paz que procurava
Afugentei todos os uivos de mim
Acorrentei as fúrias das mágoas mil
Bem longe de nós
E escondi-me doce e leda
A um canto de ti
Ana Wiesenberger
18-09-1994
Imagem – Auguste Rodin
Vivo por correspondência
Numa época epistolar
Que, pelo menos, preza
Pela celeridade
As mensagens ora breves, ora longas
Sustentam a minha necessidade
De não me sentir ausente deste mundo
De poder acreditar
Que alguém lá longe pensa em mim
Mesmo que, ao de leve
E o dia desliza em frente ao ecrã
As horas, os meses passam
E a existência assim vivida
Sabe a papel pardo de embrulhos
Que há muito recebemos com amor
Não sei, se a escrita é fuga
Exílio, ou apenas a vontade
De ser muitos rostos, muitos destinos
Que poderiam ter sido reais
Se tivéssemos voltado à esquerda
Ou à direita
Nas encruzilhadas do destino
Ana Wiesenberger
22-12-2016
Imagem - René Magritte