O sol inesperado iluminou a manhã
Saí para o jardim para o receber
E estremeci doente de saudade
Cingida pela ilusão do calor
Quase tão falsa como a profundidade
Das conversas e dos pensamentos
À luz do álcool
Ana Wiesenberger
13-02-2017
Imagem - Manet
Não sei, se me escondo
Ou se me abrigo apenas
Sob as múltiplas capas
Ao longo do dia
Quando em redor de mim
Tudo é cinzento nu
Escalda-me o sol da América Latina
Com Isabel Allende, Garcia Marquez
E Vargas Llosa
Viajo no tempo e passeio-me
Na Berlim de outrora com Hans Fallada
Estremeço com os solavancos
Da história de uma setter irlandesa com Stephanie Zweig
E rio-me com os disparates de Kishon
Mergulho na angústia do êxodo rural da América de Steinbeck
Dou um salto à minha amada Lisboa com Tabucchi
E penetro nos meandros da escuridão da natureza humana
Nas tramas surpreendentes de Patricia Highsmith
Livros para acordar
Livros para adormecer
E vejo-me como Firmin de Sam Savage
Um rato ávido de letras
A devorar páginas para se manter vivo
Ana Wiesenberger
08-02-2017
Imagem – Henri Matisse
Uns e outros
São os dias que passam por nós
Ecos de riso, queixas, frases sem sentido
Interjeições convenientes para preencher um vazio
No diálogo, no fio imperfeito da nossa comunicação
Uns e outros
São os dias que passam por nós
Júbilo e dor
Amores e desamores
Nascimentos que festejamos
Velórios a que assistimos
Recordações dos laços que foram
Ou perduram dentro de nós
Uns e outros
São os dias que passam por nós
O tempo que ora corre como um regato veloz
Ou adormece como um ancião cansado
E faz coxear os ponteiros do relógio
Uns e outros
São os rostos que passaram por nós
Que nos amaram
Que nos feriram
Que nos esqueceram
Que esquecemos
Lengalengas de infância encravadas na memória
Papagaios de papel desbotados
A vaguear em sonhos perdidos
Ana Wiesenberger
04-02-2017
Imagem – Yves Tanguy
Quando passavas na avenida Com o teu passo elástico Eu seguia a energia do teu corpo Com a gula de um gato A mirar um pires de leite A deslocar-se para longe Dos seus bigodes ávidos Entretive-te no meu olhar Passeei-te pelas minhas palavras Senti o esforço dos teus músculos tensos A dominar o arco das tuas expressões Do teu ser inquieto, altivo e distante Adivinhava-te no fogo dos olhos O calor da tua libido cintilante Estremecia colada à brusquidão Dos teus movimentos naturais Que em mim suscitavam desejos Que eu não queria assumir Apetecia-me entrar nos teus sonhos Sentir cada centímetro da tua pele Sob os meus lábios Abocanhar-te a nuca quente Misturar-me contigo Numa dimensão alucinada Ser seiva e raiz Uivo e rugido Num bosque de outra era E contudo, só as nossas mãos se tocaram Ao de leve, num momento breve, desajeitado Na troca de um livro De que ambos gostávamos E toda a paixão A real e a imaginária Esvaiu-se por entre Os Vagabundos de Gorki Adormeceu no colo de Teresa Raquin Ana Wiesenberger (in Erotismus, Impulsos E Apelos) Poema dito no programa "Amantes da Poesia" de Maria Isabel Rodrigues, na Popularfm
Raramente choro
E no entanto, quando o faço
Pareço querer transformar o Tejo e o Sado
No Amazonas
As lágrimas não trazem alívio
Destroem pestanas
Deixam os olhos inchados
E no dia seguinte, fazem-nos sentir pior
Ao vermos a ruína em que a tempestade
Transformou os nossos rostos
Não sei, porque elas me acontecem
Há tanta dor reunida em dias de olhos secos
Chego a pensar, que são matreiras
E esperam pelo momento
Em que baixamos a guarda à tristeza
Só porque a ela já nos habituámos
Sempre achei, que Hemingway tinha razão
A man can be destroyed but not defeated
Daí, as guerras não terem fim
E as vidas tortuosas se alongarem
Em vez de se extinguirem
Dobradas sob a desesperança dos dias
Hoje à noite chorei
Mas já untei as pálpebras e as bochechas
De creme reparador
Não me apetece empanturrar-me de realidade
Antes de tomar o pequeno-almoço
É pena, que ainda não inventassem
O sérum perfeito para compor
As mossas e as marcas do desassossego na alma
Ana Wiesenberger
Raramente choro
E no entanto, quando o faço
Pareço querer transformar o Tejo e o Sado
No Amazonas
As lágrimas não trazem alívio
Destroem pestanas
Deixam os olhos inchados
E no dia seguinte, fazem-nos sentir pior
Ao vermos a ruína em que a tempestade
Transformou os nossos rostos
Não sei, porque elas me acontecem
Há tanta dor reunida em dias de olhos secos
Chego a pensar, que são matreiras
E esperam pelo momento
Em que baixamos a guarda à tristeza
Só porque a ela já nos habituámos
Sempre achei, que Hemingway tinha razão
A man can be destroyed but not defeated
Daí, as guerras não terem fim
E as vidas tortuosas se alongarem
Em vez de se extinguirem
Dobradas sob a desesperança dos dias
Hoje à noite chorei
Mas já untei as pálpebras e as bochechas
De creme reparador
Não me apetece empanturrar-me de realidade
Antes de tomar o pequeno-almoço
É pena, que ainda não inventassem
O sérum perfeito para compor
As mossas e as marcas do desassossego na alma
Ana Wiesenberger
06-01-2017
Imagem – Pablo Picasso