Vejo-me como um velho escaravelho Consumido pela demência e pelo abandono Que teima em continuar a empurrar Uma bola imensa de excrementos Que ainda sente útil, mas já não o será
Como se o dia fosse meta E a noite margem
Como se algures estivesse sempre a alvorecer E os olhos vendados por forças obscuras Não lograssem atingir a claridade
Como se atrás de si só houvesse Uma poeira indefinível E diante de si Um emaranhado impenetrável Um labirinto de chamamentos falsos Ecos dos pântanos onde almas confusas pereceram
E ele persegue no absurdo da caverna Talvez saiba que são apenas sombras Mas não há mais nada É preciso fingir para acreditar
Quando os gritos morrem na garganta Sob o estrangulamento do que deve ser Do que não pode ser
Quando as emoções são fumadas Em cigarros de dor Reduzidas a cinza nos cinzeiros Ao cheiro baço que se infiltra Em todos os cantos da casa
Quando os diálogos são iguais Em todos os dias Às mesmas horas As palavras são meros semáforos Para concretizar acções vazias Por entre paredes derrotas Na sua condição de lar
Quando sentes frio E o barómetro marca uma temperatura Amena
Quando as vozes na tua cabeça São a agonia do silêncio em redor
Quando te desligas à noite No abraço de um composto químico
Quando despertas sem vontade E o café é lento a dar-te corda ao corpo
Quando encetas uma data Com os gestos, já gastos na anterior E nem sabes, porque o fazes
Na minha vida deixei-me abraçar Por patas e páginas Cães, Gatos Livros, jornais, revistas Cadernos meus em que mergulhei Emoções Em que tentei encadernar a minha solidão Endémica
Houve sempre mãos a quererem-me tocar E eu a querer ser tocada Aprisionada na torre do meu ser Sem me conseguir libertar Sem me conseguir dar A ninguém
Todavia, sinto com tanto fervor O Colectivo; as vozes feitas de terra Sangue e Dor Os desprotegidos, os segregados Pela amoralidade dos sistemas Pela indiferença confortável Dos que juraram viver bem Num quadrado bem definido De presunção e concepções estreitas Fechadas à dinâmica do crescimento Da elevação do percurso humano
Na minha vida, restam-me as palavras Para chegar aos outros e a mim E às vezes, quando o sol se põe E a noite me enlaça numa exteriorização Da minha amargura, da minha escuridão Olho o céu através da cortina das minhas lágrimas E procuro nas estrelas longínquas Todas as vozes e os cheiros amigos Que já se apartaram de mim
Nas minhas gavetas desordenadas Perdura um cheiro a mofo húmido Dos sonhos guardados há muito E as traças alimentam-se da poeira Que era mágica Alfazema da vontade esquecida Alecrim das promessas quebradas Madressilva das ternuras amarelecidas Rosmaninho das tranças brilhantes De outrora
No meu roupeiro imenso Pululam lado a lado Numa intimidade de memória Os meus anos de abelha, de borboleta De pássaro inquieto a picar O que eu pensava ser o azul do céu E os meus momentos felinos Guiados pela febre de outros cheiros Numa demanda ao luar dos encantos Numa urgência de me eternizar Noutros genes geradores de outros ciclos Outras verdades, outras direcções
A porta aparentemente aberta do meu quarto Esconde trancas indecifráveis Códigos armadilhados Pensamentos amotinados, cruéis Desejosos de cercar, eliminar O que não podem conter Numa rejeição construída no tempo improvável Duma meditação pagã
Por isso, o meu quarto É toca, é antro, é covil É mortalha cálida Para as minhas horas Inacabadas
Acordei bastante tarde Dormi muito; não bem, mas muito Como se tivesse passado a noite A procurar nas horas longas O descanso para as minhas forças amarrotadas Que não vinha
Agora, café De facto, muito café Na ilusão terna, de que a cafeína me desperte E a cada célula devolva A capacidade plena de vivenciar a realidade Com os cinco sentidos A tecerem um Sol miraculoso Na escuridão da minha dúvida
Há uma tertúlia de poesia Onde eu queria estar esta tarde O meu espírito já foi para a estação Com receio de não apanhar o comboio E perder o início da sessão Mas o corpo está inerte Aconchegado em almofadas na cama A abominar movimento Num cansaço que enrola o tempo Num novelo emaranhado Cheio de nós complicados A desafiarem a minha paciência
E então, que faço? Mais café, mais ar, mais vozes Que chegam a mim pela janela do meu quarto Para me lembrar que há vida lá fora E eu devo elevar-me inteirinha no balanço da brisa E agarrar o dia Com as mãos postas em oração
Porque será que estou tão desatenta Apática, até, enquanto oiço e vejo O Otelo Saraiva de Carvalho a falar De um Abril de 1974 feliz
Talvez, tudo me pareça irreal, estranho Uma fantasia, um sonho de patriota Uma vontade explosiva Um borrão de esperança na nossa história
Parece o Momentos de Glória Misturado com E Tudo O Vento Levou Com qualquer coisa de Os Últimos Dias de Anne Frank Com Elogio da Loucura ao fundo
Talvez, eu já tenha entrado numa dimensão De Lobo das Estepes em acordes intercalados Com o Livro do Desassossego Com banda sonora do Grito de Allen Gingsberg Na voz de um Rutger Hauer desesperado Em Blade Runner
Se calhar, só estou triste E é possível que As Ondas que vêm E vão da televisão à minha cabeça Me levem ao pós-Animal Farm 1984 revisitado Admirável Mundo Novo sem soma capaz de nos iludir Num bem-estar de equilíbrio químico
Será que vamos permanecer serenos Como perus em véspera de Natal Cordeiros por alturas de uma Páscoa Que parece não terminar
Ana Wiesenberger (in Portugal, Meu Amor) 24-04-2013