A ausência do mar-pátria Desata em mim miríades de delírios Um estar por aqui e já não estar Um quase querer abandonar a vida Por não poder respirar
A alma confinada nesta saudade imensa Sarcófago onde adoece a esperança Corredor lúgubre e infinito Que me faz acreditar não haver luz Para banhar os meus sentidos
Erro os olhos à volta E nada vejo que os prenda Adoeço presa de ecos e visões absurdas Como se por detrás das minhas pupilas Vivessem postais ilustrados de cores berrantes A imporem etiquetas a eito em paisagens Como se uma cidade, um rio, um país Fosse aquilo E a minha capacidade de sonhar Estivesse amortalhada pela lente do medo De saber-se prisioneira de um tempo mudo Sem contornos, sem prenúncio de beleza Um arco-íris a acontecer numa gravura De uma infância há muito vivida Talvez, lamentavelmente nunca esquecida Um desejo de retocar molduras do passado Com o sangue do sacrifício de um presente Sempre adiado, cada vez mais irreal Como uma vida passada Que se pensa ter vivido Dimensão suspensa de uma Atlântida renovada Em anéis enfeitiçados por um Deus louco Por lágrimas humanas
Ontem à noite adormeci Vencida pelo cansaço do dia E traí a chuva de letras Que jorrava em mim Uma sede de papel por abarcar
Hoje, quando acordei Perturbada pela culpa Esquadrinhei os cantos da mente Mas elas são caprichosas E castigaram-me com silêncio
Não se escreve porque se gosta Escreve-se porque só assim se é No entanto, parece-me em rigor Que o poeta não é senhor Mas sim, servidor do verbo Como se apenas tivesse sido escolhido Mão humilde e atenta Perante a exuberância dos ecos Que em si moram
Ser professor É saber olhar e ver Na paleta dos rostos na sala de aula As cores a articular Na construção da ponte para o diálogo Entre o saber a transmitir E a vontade individual de reter Aprender a aprender Suscitar o ensejo no outro De descobrir um mundo novo De factos, meios e modos de ver a realidade De comunicar ideias e paisagens interiores Ou não
Ser professor É saber planear e calcular Equações de espaço e tempo Cansaço, desatenção e monotonia E procurar vencer no quotidiano A batalha das horas que não chegam Dos recursos que escasseiam Para ajudar a Ser Jovens na encruzilhada das emoções Na leveza do querer esvoaçante Como uma bandeira ao vento Num mastro suportado por pares e familiares Que a idade há-de derrubar ou fortalecer Para realizar a explosão do Eu
Ser professor É saber olhar e ver Nos semblantes alinhados diante de si Os que mais precisam de respostas, de perguntas Ou somente de uma mão sobre os ombros De um sorriso de cumplicidade, de compreensão Ou de ouvidos atentos num canto da escola
Ser professor É saber olhar e ver E combater no dia-a-dia a incerteza de ter sido justo De ter dado corpo às estratégias adequadas De ter estado vigilante De ter agido em conformidade De ter sido não só cérebro, mas coração Para poder adormecer, conciliado Pronto para a jornada do amanhã
As memórias mais doces que me acompanham Têm bigodes hirtos e olhares profundos Patas fofas desajeitadas ou leves como veludo
Com esses seres maravilhosos Aprendi a proximidade A partilha do tempo e das emoções A suavidade da ternura natural O calor da pertença Que ergue o muro contra a solidão
Ao longo dos anos vivi despedidas dolorosas Focinhos que segurei entre as minhas mãos Molhados com a angústia das minhas lágrimas Mas continuei a aventura do amor Nos que se sucederam Que fui encontrando pelo caminho
E hoje, sinto-me profundamente grata Por a vida me ter dado a capacidade De ser mãe, não apenas na minha espécie Mas também de alguns filhotes de pêlo Abandonados pelos humanos infames Desprovidos da essência do amor Imolados à compulsão do Ter Em vez do Ser
O Dia Internacional do Animal Não pode ser só a 4 de Outubro Abramos as mentes dormentes De cálculo e esterilidade Façamos de novo o milagre da criação Em cada dia Em cada rosto Um mundo novo de respeito e Amor
Obrigada, Sol Porque me aqueces E dissolves com amor O frio que me inunda a alma
Obrigada, Vento Porque me sacodes E me libertas do entorpecimento Com que a depressão me ameaça
Obrigada, Chuva Porque me despertas Quando sulco as ruas Ausente de rumo e sentidos
Obrigada, Neve Que me envolves em beleza E espalhas a magia em redor Por que os meus olhos anseiam
Se eu fosse tempo Seria nevoeiro, glaciar Ou tempestade Mas como sou mulher Solto o meu temperamento cíclico Em lágrimas, gritos e fúrias infernais Nos dias em que não consigo Ser apenas sorriso
Há alturas em que temos de parar de ser Para sentir Arrumar o corpo num sítio, aquietá-lo Imobilizá-lo e permitir que o olfacto E a visão suturem o vazio instalado
Suspender a inquietude da afirmação do ego Atar a leveza da borboleta a uma pedra E esperar pela profundidade do musgo Dos nossos pensamentos mais íntimos Sempre ocultos nos passos desaustinados De um quotidiano febril em que se faz O que tem de ser feito Em que se olvida o querer A voz subterrânea cada dia mais amordaçada Sufocada pela realidade invasiva A anular o que há de singular em nós
De tantas pontes construirmos Para chegarmos aos outros Esquecemo-nos da necessidade de olharmos Para dentro e lermos a nossa verdade Que pode não ser admirável, qual obra de arte Mas é a nossa raiz, a nossa marca Que nos distingue dos outros A nossa respiração
Setembro dos ocres misteriosos A surpreenderem-nos pelos caminhos Por entre o calor do sol E o sal do mar que apetece Agora mais do que nunca Porque sentimos a ânsia de prender o Verão Não permitir que ele parta E leve consigo as horas despreocupadas Que vivemos Os risos das crianças, os olhares cúmplices Dos apaixonados libertos do jugo do trabalho Para amar
Setembro das minhas memórias doces De juventude Mãos enlaçadas em passeios inocentes ao pôr-do-sol A desenovelar sonhos por cumprir Destinos difusos ainda A ganhar contornos nas nossas vozes de esperança Nas nossas expectativas articuladas Na promessa que os adultos diziam ver em nós Ou não
Setembro do amor, da paixão natural Que tivemos de encerrar numa caixa de areia Por sermos néscios e acreditarmos Que os outros tinham razão Não era para cumprir E afinal, a vida reencontrou-nos em amizade De cicatrizes guardadas e esquecidas E eu penso nas horas pardas da minha meia-idade Que até estive com o Príncipe Encantado Mas não fui capaz de vestir a minha rebeldia de egoísmo E fiz-lhe ver, que eu não era a sua destinada Princesa
Na despedida trocámos prendas Tirei o meu colar de contas violeta do pescoço Ele despiu a camisola verde como a copa das árvores Que ambos sabíamos respirar Abraçámo-nos com olhos vítreos de dor E voz quebrada Em mim sempre o imperativo do verbo a ceifar o meu querer O meu desejo É melhor assim!
Ana Wiesenberger (02-09-2014) Imagem - Gustav Klimt
O vazio prolonga as horas Estica os minutos em não-ser Não-estar, não-ver, não-sentir
Se ao menos, ao acender uma vela Comunicasse a vontade de luz Orientação numa escuridão medonha Que me atormenta Incompreensível para um ser da noite
O que paira sobre mim é a dor Os dentes aguçados do que não quero Assumir ou compreender
Sempre quis inventar caminhos Sempre fiz trilhos, vias abertas E agora pareço um morcego embriagado De estranheza A embater nas esquinas dos muros Esquecido de um radar ancestral Que lhe daria a paz dos percursos Conhecidos, apetecidos
Amanhã permanecerá ainda O grito contido, estrangulado Desabituado de habitar a garganta
No bosque onde as árvores altas Me fazem esquecer os muros da cidade Diluo o meu medo dos dias E encho o peito de cheiros melodiosos Feitos de resina e verde de vida
Detenho os olhos na imensidão de pinhas Espalhadas pelo solo - tão pequeninas E sinto a saudade das irmãs delas Que, agora, me parecem enormes Expoentes do sul da Europa Marcas do país que trago comigo
A dor explode, mas não permanece Um bailado de borboletas enleva-me Em oração - um sentimento de gratidão Profunda Pelo ar que respiro Pela centelha de energia que habita em mim Pela beleza da natureza que me envolve Pelo mistério do tempo que as horas encerram E tal como as marés Levam e trazem significados Que só as mentes abertas Conseguem descodificar - sentir
E depois, já mais leve Dirijo os meus passos para casa A entreter no coração desejos de liberdade Fecho os olhos por um minuto E já não sou mulher O lobo que me sustém afasta-se, gracioso E une-se à paisagem