Foi à Cozinha
Foi à cozinha
Abriu a gaveta dos talheres
E colheu a sua faca preferida
Ligou a música na sala
Sentou-se e aproximou o gume perfeito
Da epiderme suave do seu pulso
Fê-lo deslizar por um instante
E viu o fiozinho de vermelho vivo
Assomar-se tímido
Uma janela ínfima no moreno da carne
Depois ergueu-se, já na convicção firme
Da descoberta dos seus desejos íntimos
Há muito baralhados
Dirigiu-se ao escritório dele
Deparou-se com a ordem das estantes;
Décadas e décadas de música catalogada
Um rigor de cientista coleccionador de órgãos
Amostragens de patologias organizadas
Ao longo de uma vida de dedicação e esmero
Respirou fundo e lançou-se ao trabalho
Passou a noite a abrir as caixas dos CDS
E a desenhar com a faca metódica
Um Z que lhe apareceu natural e espontaneamente
Como se bramisse a espada de Don Diego de La Vega
Numa promessa de justiça cumprida
Antes de fechar a porta, pousou os olhos no jornal dobrado
E achou por bem, deixar-lhe um sinal
Um prenúncio de inquietação - um aceno breve
E enterrou nele a faca copiosamente
Até o transformar numa saia de tirinhas de letras
Que uma criança poderia querer usar
Para se divertir com os amigos
Num dia de Carnaval
Ana Wiesenberger
20-05-2014
Imagem - Pedro César Teles