Verão

Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]
Leio desalmadamente
Como se os livros fossem tábuas
As palavras, pregos
E só o verbo me alimentasse
A existência
Saboreio as ideias dos autores
Vou ao encontro das imagens
Da biografia por detrás de cada obra
E alegro-me como uma criança
Quando são vivos e acessíveis
À comunicação
Há os desconhecidos
Os que já conheço um pouco
Dois ou três volumes de companhia
Há os que tememos ler
Porque entram dentro de nós
E fazem estragos irreparáveis
Há os que queremos ler e não conseguimos
Porque não os encontramos
Ou porque nos encontramos
Quando para eles
Não estávamos preparados
E por isso, junto à minha cama
E debaixo dela
Armazeno uma profusão de estilos
E discursos
Para não ter de me erguer do leito
Para encetar o diálogo necessário
Ao tempo antes de adormecer
Com um parceiro adequado
Ana Wiesenberger
02-06-2015
A dor é uma aprendizagem
Uma vereda a percorrer
Apesar do medo
Não é possível viver
Sem a conhecer
Uns mais; outros menos
Uns com mais coragem,
Resiliência
Outros quase envergonhados
A tentarem fugir
Como se ainda fossem crianças
E quisessem tapar a cabeça com o cobertor
Para se esconderem do monstro
Que habita a escuridão do quarto
Uns e outros
Mendigos errantes
Em busca da luz opaca:
Esquecimento, entorpecimento dos sentidos
Ânimo falso para prosseguir o caminho
Ana Wiesenberger
28-02-2021
Ganhei medo aos dias
Como se em cada hora
A agulha dos minutos
Pontuasse a minha carne
Com pequenas feridas
Ana Wiesenberger
17-10-2019
Imagem – John French Sloan
Nestes tempos sem Rei nem Roque
Já nem a quem se quer bem se acode
E só se vive bem
A mostrar o que se não tem
De resto, se calhar foi sempre assim
Mas agora com tantas redes sem fim
Descobrem-se em janelas sempre abertas
Que há muitos e muitas parvas espertas
A interioridade dilui-se na aparência
E a verdade das coisas é uma inconveniência
Ninguém tem vontade de ver o outro descomposto
Se só das uvas se louva e aprecia o mosto
E por isso, muito se vê, não obstante o pouco que se faz
As tintas da individualidade são lavadas com aguarrás
E se alguém tem o despropósito da mediocridade denunciar
Torna-se indesejável porque à vida não sabe reinar
Ana Wiesenberger
08-01-2019
Imagem – Arturo Souto
Tenho um alçapão enorme
Onde guardo as minhas memórias
Mas raramente me lembro
Onde pus a chave
Ana Wiesenberger
Imagem – Wladimir Lukianowitsch von Zabotin
O passado é um lastro incómodo
Que atormenta o presente
Em solavancos emocionais
Que nos fazem tragar o cálice da dor
Uma e outra vez
Como ratos de labirinto massacrados
Com choques eléctricos
Nos percursos erróneos que escolhemos
Ou aceitámos vergados pela embriaguez
Do cansaço contínuo
Tantos becos sem saída
Tantas portas fechadas
Ana Wiesenberger
25-09-2017
Imagem – Jorge Pé-Curto
Corredores
Não vejo portas, mas sei
São corredores
Túneis; espaços longos, estreitos
Que vão dar a outros
Ou talvez não
Corredores
Estreitos, gargantas de monstros
Onde fomos parar
Sem dar por isso
De onde é preciso sair
Mas nunca
A qualquer preço
Corredores
Línguas confinadas que nos aprisionam
Ilusões de caminhos bifurcados
Que alguém se esqueceu de concretizar
Corredores
Escuros, luminosos
Breves, longos
Passagens que nos gradeiam a escolha
De ir ou ficar
Corredores
Que talvez nos levem ao Sol
Que talvez nos escondam na penumbra
Que talvez sejam a outra face da Lua
O outro modo de ser, estar, viver
Num entretanto contínuo
Que nos assusta
Que nos estrangula
O grito
A consciência de estarmos imersos
Perdidos na teia da razão
A suplicar um amanhã cristalino
Que já não vem
Ana Wiesenberger (in Corredores)
7 seguidores
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.