Leio desalmadamente
Como se os livros fossem tábuas
As palavras, pregos
E só o verbo me alimentasse
A existência
Saboreio as ideias dos autores
Vou ao encontro das imagens
Da biografia por detrás de cada obra
E alegro-me como uma criança
Quando são vivos e acessíveis
À comunicação
Há os desconhecidos
Os que já conheço um pouco
Dois ou três volumes de companhia
Há os que tememos ler
Porque entram dentro de nós
E fazem estragos irreparáveis
Há os que queremos ler e não conseguimos
Porque não os encontramos
Ou porque nos encontramos
Quando para eles
Não estávamos preparados
E por isso, junto à minha cama
E debaixo dela
Armazeno uma profusão de estilos
E discursos
Para não ter de me erguer do leito
Para encetar o diálogo necessário
Ao tempo antes de adormecer
Com um parceiro adequado
Ana Wiesenberger
02-06-2015
Acordo já inquieta
Os pensamentos sacodem-se em turbilhão
Encravam em saliências comezinhas abomináveis
Como se fossem pássaros numa gaiola vasta
E descobrissem no acaso dos seus voos
Os limites do espaço
Imagino-me programa com falhas
Fecho os olhos
Volto a abri-los
Tenho de fazer reset deste despertar
Segundo as previsões meteorológicas
Vamos ter sol
Debruço-me da cama
Como quem se encontrasse à janela
E procurasse ver algo lá fora
Saco um livro da pilha desordenada
Autores, épocas, idiomas, estilos distintos
E ganho consciência que o único diálogo possível
Só me acontece nesta babilónia construída
Pelo meu querer viajante
Acendo um cigarro
Saboreio um gole de café
E mergulho nas páginas
Como se abrisse a torneira
Para o duche matinal
Antes de encetar o dia
Ana Wiesenberger
24-08-2016
Imagem – Juan Gris
Não sei, se me escondo
Ou se me abrigo apenas
Sob as múltiplas capas
Ao longo do dia
Quando em redor de mim
Tudo é cinzento nu
Escalda-me o sol da América Latina
Com Isabel Allende, Garcia Marquez
E Vargas Llosa
Viajo no tempo e passeio-me
Na Berlim de outrora com Hans Fallada
Estremeço com os solavancos
Da história de uma setter irlandesa com Stephanie Zweig
E rio-me com os disparates de Kishon
Mergulho na angústia do êxodo rural da América de Steinbeck
Dou um salto à minha amada Lisboa com Tabucchi
E penetro nos meandros da escuridão da natureza humana
Nas tramas surpreendentes de Patricia Highsmith
Livros para acordar
Livros para adormecer
E vejo-me como Firmin de Sam Savage
Um rato ávido de letras
A devorar páginas para se manter vivo
Ana Wiesenberger
08-02-2017
Imagem – Henri Matisse