As vésperas dos dias que trazem mudança São sempre alvoroço Uma atenção já desatenta Um cá, que já é lá Um olhar abrangente de um miradouro interior Para os telhados da cidade que queremos fazer nossa Um papel que já nos vemos a assinar Uma farda que já existe no espelho diante de nós Apesar de ainda aguardar o momento no cabide das horas
No entanto, tudo será e nada será como antecipámos No nosso desejo de viver o gosto da passagem O uniforme não adere bem às arestas do corpo A assinatura sai trémula e desajeitada O barulho incomoda-nos a vivência E a chuva entristece o esplendor da paisagem
As flores roubadas ao todo do jardim Morrem no cumprimento do dever De embelezarem as casas Do alto dos seus jazigos sobre as mesas Das pessoas que as dizem amar
De como tão contrário a si Pode ser o amor Escreveu Camões com intemporal lucidez
O fogo que arde sem se ver Deixa muita cinza pelos cantos Palidez e frio nos dias Morte assumida nos braços caídos Já sem préstimo para ósculos e enlaces
A triste madrugada da partida Repete-se ao longo das páginas do calendário Nos pares, que de formosos e não seguros Já nada resta E se o amador na coisa amada se transformou Perdeu a pena e o rumo Dos olhos cor de limão que julgava bom porto Só o travo amargo lhe enche o copo das horas
O tempo traz consigo inevitavelmente As mudanças da vontade e da consciência E esgotadas as novas artes, novo engenho para buscar Fica apenas o colo pleno de esperança amarrotada e vã Um não sei quê, que nasce não sei onde E mesmo, quando até se sabe o porquê Dói como um perene desconcerto