Quarentena
Quarentena
À força de se esperar
Não se espera
Os dias passam por nós
Numa dormência estúpida
Intercalada por momentos de inquietação
Não fui a única a ceder ao impulso de arrumar
Inventariar o útil e o dispensável
A julgar pelos sacos recorrentes
Junto aos contentores do lixo
Em tempos de caos
O medo leva-nos a procurar a ordem
A ilusão de que podemos moldar a realidade
Com as nossas mãos humanas
Nas ruas as pessoas deslizam
Como ratos inseguros num território desconhecido
E se param a uma distância confortável
Para cumprimentar amigos e vizinhos
Fazem-no com os olhos errantes
Ansiosos por comunicar
Arredios pelo hábito construído da desconfiança
Os que se trancam em casa
Barricados em obediência e pânico
Vomitam em expressões comezinhas e lugares-comuns
A inveja dos audazes que vêem por detrás da vidraça
Secretamente desejosos de os ver cair doentes
Por não contarem os passos e os minutos
Que se atrevem a viver fora de portas
Em tempos de pandemia
Quando o vírus se afastar
Da contabilidade diária no ecrã
Teremos de reaprender a proximidade
Deixar de sentir as mãos e os braços dos outros
Como pás a abrir-nos o leito de morte
Ana Wiesenberger
24-04-2020
Imagem – Salvador Dali