Se eu fosse um polvo Tinha muitos pés para secar Depois do banho
Se eu fosse um pato Escondia-me por entre o mato Junto ao lago E fazia um quá quá estridente E inesperado Para assustar no banco, os namorados
Se eu fosse um ganso selvagem Fazia muitos voos nocturnos Com escalas intercaladas em lugares interessantes E mesclava a quietude da noite Com o grito do meu bando
Se eu fosse um gato Perseguia os passarinhos com o meu olhar intenso E abria as garras a tempo de os apanhar Só para me divertir Ou para os devorar Se o meu estômago estivesse vazio E não houvesse prato de comida à minha espera Num canto da cozinha
Se eu fosse um cão Fazia um sonoro ão ão Para a vizinhança da presença de um estranho alertar E conhecia as pessoas boas e más pelo meu nariz astuto Sem precisar de indicadores filosóficos ou políticos
Se eu fosse um lobo Era dono das florestas e tinha um covil inacessível nas montanhas Onde aguardava ansioso que a neve me cobrisse de encanto e magia Para me confundir com a paisagem
Se eu fosse, se eu fosse Quem dera sempre ser O que se não é Para aprender a ser O que realmente se é
Estava cansada e fui até ao país das Histórias de Encantar Mas saí de lá ainda mais desencantada A Bela Adormecida queixa-se de insónias constantes Enquanto o seu belo Príncipe de outrora Faz ecoar os seus roncos expressivos por todo o palácio
Ela, que até, se tinha congratulado Com a sorte de ser estéril Lamenta agora o vazio dos seus dias Se tivesse tido prole Poderia entreter-se a dar colo aos netos E a correr as tendas dos artesãos Em busca de brinquedos perfeitos
A beleza, ainda a conservara muito tempo Mas depois, a anorexia deu lugar à bulimia E arruinou a linha esbelta da sua figura
Na porta ao lado, a cena não era mais animadora A Gata Borralheira sofre paciente e triste As artroses e as poliartralgias Herança das sevícias domésticas da madrasta Que longos anos perduraram
Continua meiga e afável com todos Queixa-se ao de leve da viuvez E da vida atarefada dos filhos gémeos Que trabalham na Wall Street da Avenida das Fadas
Quando a saúde lhe permite, dá festas de caridade Ajuda órfãos e viúvas carenciadas Inaugurou há pouco uma Associação de Protecção Animal Nuns hectares baldios de que não precisava Coitadinha, ainda me deu um frasco de geleia e biscoitos caseiros Antes de eu franquear a porta de saída
A Alice sofre de neurastenia grave E da esquizofrenia, que já na infância se tornara evidente Todos os dias manda abrir buracos no chão do jardim Quer regressar ao País das Maravilhas que nunca devia ter abandonado Mas não se lembra onde era o túnel da entrada Todos sabem, que não há nada a fazer Os físicos mais célebres e afamados dos quatro cantos do mundo Vêm vê-la a pedido da família, mas não a conseguem tratar
O Patinho Feio, que afinal era um cisne Não aguentou os traumas de criança E é um alcoólico desesperado Sempre com o olhar no vazio A balbuciar por entre os dias Que ninguém o entende Antes ou depois de meter o bico na garrafa
O Gato das Botas, então Deixou-me dilacerada A gangrena instalou-se lhe há muito nas pernas Mas ele teima em viver assim até ao fim E a carne vai-lhe morrendo gradualmente sob o pêlo Enquanto ele delira sobre os seus feitos de outrora
Hansel e Gretel estão bem Pelo menos, um com o outro A comunidade não aceita a relação incestuosa Mas eles pareceram-me muito satisfeitos E vi-os sorrir, cúmplices Ao mostrarem-me a campa dos pais nas traseiras
Foram extremamente simpáticos E nem me queriam deixar partir Todavia, rebentaram em mim, ecos de psicologia Aos solavancos E ao apanhar o fio transversal das relações de causalidade Entre vítimas e agressores Julguei por avisado, afastar-me dali Antes que eles me começassem a encher a pança com assados Doces e iguarias mais