O tempo dentro de nós é um fluir constante
Onde o passado vive de mãos dadas com o devir
E se não logra furar o filtro da memória consentida
Assalta-nos em sonhos transpondo o muro frágil que erguemos
Para nos defendermos da dor de sentir o que foi e já não será
O sono levou-me a noite passada aos corredores da escola
O mundo de tinta, papel e crescimento onde eu era feliz
Fiz revisões dos verbos no passado numa turma
Fui buscar os testes para a seguinte à reprografia
O passo sempre apressado, os minutos sempre calculados
A vontade convicta a tecer malabarismos para afastar os escolhos
Noutra esquina onírica deambulei pelas ruas a gritar: Becky! Becky!
E a alegria de vê-la, de encontrá-la, depois de se ter perdido de mim
Foi tão forte que me devolveu à realidade e deixou na chávena de café
O travo amargo de uma saudade irremediável
Ana Wiesenberger
01-08-2018
Imagem – René Magritte
Abro os olhos
Depois a janela
Sento-me na cama
Cigarro entre os dedos
Caneca de café na outra mão
E o trinar dos pássaros
Misturado com o ronco dos carros
Entra pelo quarto
Não quero perder os farrapos do sonho
Antes de os encaixar
De lhes dar sentido na moldura da realidade
Porque será assim?
Porque é quase sempre assim
Somos humanos, logo precisamos de descodificar as coisas
Para afastar o medo que o desconhecido nos causa
Não há nada a temer
A não ser as palavras
Li isto em qualquer lado
E ficou encravado em mim
Como um punhal
O puzzle por fazer volta a zumbir à minha volta
Que peças tão estranhas
E contudo, tão simples
Talvez, não o queira ordenar como um todo
Assumir como uma premonição
Parece-me, que prefiro afastá-lo
Com um gesto automático
De quem se defende de um ramo
Que nos pode ferir o rosto
Ao caminharmos por uma vereda no campo
As mesas redondas compostas com as crianças
O círculo da vida
Os desenhos infantis sempre renovados
Que a professora guarda no armário da sala
Porque o tempo é célere
E os petizes em breve deixam de o ser
Para dar lugar a outros
Pergunto à minha mãe quando e como morri
Ela não se lembra
Surpreende-me, que ela não se recorde
A lápide do cemitério surge num instante relâmpago
Para logo desaparecer, como se brincasse às escondidas
Só consegui ver o início do meu nome
Entretanto tu sorris
Encostas a tua cabeça à minha
Dizes-te cansado
E eu corroboro o teu cansaço com o meu
Mas não deixamos de sorrir cúmplices
No teu olhar a vivacidade saudável
De quando éramos jovens
Antes do teu cancro
Antes da minha doença absurda
Há um quiosque onde compro
Queijo fresco muito branco
E o homem que me atende
Fala sobre os delírios de viver
Naquela cidade da Alemanha
Contraponho, que sim
Mas não durante muito tempo
A conta é avultada
Pago em moedas e dois isqueiros
Um por ti; outro por mim, já se vê
Ambos fizemos o percurso
Para o abraço do urso branco
Em anos de fumo e fantasia
Não quero, que te despeças de mim
Não quero, despedir-me de ti
Fiquemos, mais um pouco
Por aqui
Ana Wiesenberger
13-03-2017
Imagem – Frederic Edwin Church
Neva O branco imenso reconcilia-me com a minha verdade Roça-me a consciência com os fantasmas dos meus actos A predisposição inata, fatal para a queda O abismo singular do iceberg que se afasta rumo ao infinito Ao sonho, à morte
Há uma comunhão intrínseca nisto tudo É preciso, que eu adormeça o ser social Para poder ser fecundada pelos ecos Que chegam até mim pelas páginas Pelas memórias decantadas pelo tempo E aguardam no barro dos dias Pela forma que a minha mão lhes vai dar Vergada ao desconforto, ao frio das árvores A que o solstício impiedoso levou as folhas
Ana Wiesenberger 20-01-2016