A ausência do mar-pátria Desata em mim miríades de delírios Um estar por aqui e já não estar Um quase querer abandonar a vida Por não poder respirar
A alma confinada nesta saudade imensa Sarcófago onde adoece a esperança Corredor lúgubre e infinito Que me faz acreditar não haver luz Para banhar os meus sentidos
Erro os olhos à volta E nada vejo que os prenda Adoeço presa de ecos e visões absurdas Como se por detrás das minhas pupilas Vivessem postais ilustrados de cores berrantes A imporem etiquetas a eito em paisagens Como se uma cidade, um rio, um país Fosse aquilo E a minha capacidade de sonhar Estivesse amortalhada pela lente do medo De saber-se prisioneira de um tempo mudo Sem contornos, sem prenúncio de beleza Um arco-íris a acontecer numa gravura De uma infância há muito vivida Talvez, lamentavelmente nunca esquecida Um desejo de retocar molduras do passado Com o sangue do sacrifício de um presente Sempre adiado, cada vez mais irreal Como uma vida passada Que se pensa ter vivido Dimensão suspensa de uma Atlântida renovada Em anéis enfeitiçados por um Deus louco Por lágrimas humanas
O vazio prolonga as horas Estica os minutos em não-ser Não-estar, não-ver, não-sentir
Se ao menos, ao acender uma vela Comunicasse a vontade de luz Orientação numa escuridão medonha Que me atormenta Incompreensível para um ser da noite
O que paira sobre mim é a dor Os dentes aguçados do que não quero Assumir ou compreender
Sempre quis inventar caminhos Sempre fiz trilhos, vias abertas E agora pareço um morcego embriagado De estranheza A embater nas esquinas dos muros Esquecido de um radar ancestral Que lhe daria a paz dos percursos Conhecidos, apetecidos
Amanhã permanecerá ainda O grito contido, estrangulado Desabituado de habitar a garganta
O pássaro A quem se jura amar Por lhe proporcionar uma gaiola imensa Também testa com a dor das suas asas cortadas Os limites da sua pretensa liberdade
Canta. Não canta Come. Não come Inquieta-se como se o gato Que não vê, já o tivesse devorado Como se habitasse o interior desse gato medonho Que o engoliu inteiro E não lhe deu o tempo necessário Para perceber que estava morto
O pássaro Muda de poleiro Para cima, para baixo Pára. Escuta o silêncio Será silêncio ou um rumorejar de algo Que não conhece Talvez as batidas apressadas do seu coração Que afinal não morreu Que afinal ainda amanhece transparências húmidas Nas árvores que nunca viu Nem sentiu Ou serão remoinhos de sonhos emprestados Que alguém depositou na sua gaiola amortalhada E esquecida Como uma folha de Outono Abandonada num trilho distante Do parque ameno Onde as famílias fazem que conversam E julgam que são felizes