De dia mantenho-me apolínea De noite o vazio convida Dionísio E a dor derruba toda a construção
E neste baile enamorado De vida e morte Ordem e desordem Passam semanas, meses e anos
Só os sulcos no meu rosto Cada vez mais ausente Denunciam a tragédia real Que coabita diariamente Com a minha sede de harmonia Com o meu desejo de amar a força dos dias
E deste contínuo cair e erguer-me Desta luta em que venço e sou vencida Fica-me o estremecimento matinal De medo e cansaço decorrente da consciência De ter de cumprir mais uma jornada Que mesmo sendo diferente, será igual
Adormecerei mais tarde como ontem Como sempre Pálida de angústia e frustração Só e enclausurada neste moinho que me destrói E me leva em cada volta para mais longe de mim
A Páscoa era o almoço num restaurante rústico Com parque para a pequenada E jogo da malha para o meu pai e os outros As mulheres conversavam engomadas em vestidos novos E cabelos emproados enquanto descansavam os pés castigados Pelos sapatos ainda muito apertados nos banquinhos de madeira E lá iam vigiando as crianças por entre as rendas e as novidades Da semana
A Páscoa era a visita obrigatória aos afilhados As amêndoas e as prendas, os pratos atafulhados Folares, ninhos e fios de ovo a condizer com a promessa De renovação da vida
E depois, veio a Páscoa em que o borrego se transformou Em raiva e sangue dentro de mim Quando, ao regressar a casa, te encontrei inerte e fria E os restos guardados para ti com amor Se tornaram lixo e desperdício
Quando te enterrei Sei bem, que uma grande parte de mim Foi a enterrar Contigo
As décadas sucederam-se Mas desde então A Páscoa só me sabe a morte Não chega a assumir qualquer ressurreição Na minha mente não há ovos coloridos Que consigam tapar a imagem de um dos seres Que mais amei Só, hirta e fria
O dia começa em bruma Resquícios de uma Alcácer-Quibir Sempre presentes Sempre por resolver A cortar, dilacerantes A pretensa paz por edificar em mim Horas possíveis de construção de sentido
As vozes do passado são muitas E os seus gritos sobrepõem-se ao presente Tornam-me impossível conciliar Os caminhos seguidos, ditados pela razão megera Que me algemou ao sofrimento constante Feridas abertas e purulentas dos sonhos sacrificados Eternamente cativos na cave da minha vida E só libertados em memória dolorosa Quando a tempestade me trespassa E me dá ganas de assassinar o real Por ser uma mentira torpe
O dia começa com um travo estranho, bolorento Que me causa náusea e me exila da vontade do suster Substância que o corpo sossegou numa agonia bafienta A amordaçar o espírito no Não-Ser E o único rumo, que ainda me resta É Ser através da tinta no papel amigo Aranha triste a um canto do tempo incerto A aguardar a morte na sua teia breve
A ausência do mar-pátria Desata em mim miríades de delírios Um estar por aqui e já não estar Um quase querer abandonar a vida Por não poder respirar
A alma confinada nesta saudade imensa Sarcófago onde adoece a esperança Corredor lúgubre e infinito Que me faz acreditar não haver luz Para banhar os meus sentidos
Erro os olhos à volta E nada vejo que os prenda Adoeço presa de ecos e visões absurdas Como se por detrás das minhas pupilas Vivessem postais ilustrados de cores berrantes A imporem etiquetas a eito em paisagens Como se uma cidade, um rio, um país Fosse aquilo E a minha capacidade de sonhar Estivesse amortalhada pela lente do medo De saber-se prisioneira de um tempo mudo Sem contornos, sem prenúncio de beleza Um arco-íris a acontecer numa gravura De uma infância há muito vivida Talvez, lamentavelmente nunca esquecida Um desejo de retocar molduras do passado Com o sangue do sacrifício de um presente Sempre adiado, cada vez mais irreal Como uma vida passada Que se pensa ter vivido Dimensão suspensa de uma Atlântida renovada Em anéis enfeitiçados por um Deus louco Por lágrimas humanas