O vazio prolonga as horas Estica os minutos em não-ser Não-estar, não-ver, não-sentir
Se ao menos, ao acender uma vela Comunicasse a vontade de luz Orientação numa escuridão medonha Que me atormenta Incompreensível para um ser da noite
O que paira sobre mim é a dor Os dentes aguçados do que não quero Assumir ou compreender
Sempre quis inventar caminhos Sempre fiz trilhos, vias abertas E agora pareço um morcego embriagado De estranheza A embater nas esquinas dos muros Esquecido de um radar ancestral Que lhe daria a paz dos percursos Conhecidos, apetecidos
Amanhã permanecerá ainda O grito contido, estrangulado Desabituado de habitar a garganta
Estou cansada de memórias De salas de espera arrumadas em cubos Como aquários de grilos sibilantes
Já mandei calar o Watson e o Sherlock Holmes Disse ao Eça que fosse govarinhar para longe E ao Brecht que fizesse uma revolução
Eu estou fatigada de ecos dentro e em redor de mim Já não encontro chaves à espera que eu lhes pegue Já não distingo a Fada Boa da Má E desisti de ir até Oz
Vou desintegrar-me em palavras vãs e audiências A condizer E fingir-me leda, completa, toda adaptada ao vazio Das vozes que me estreitam pretensamente perto E cada vez mais longe de mim
Vou exilar-me nas montanhas do sono e do sonho Onde a beleza ainda acontece e eu não tenho frio Nem fome de ser e estar Onde os seres pequeninos são mestres e sábios E sabem ouvir e ensinar Onde não há espaço para mentiras ou inverdades Onde a transparência das almas se entrelaça Numa harmonia expansiva de um arco-íris sem par E ninguém precisa de se justificar Para existir
Na cabeça vazia pesam-me as vozes Que não consigo escutar Oiço-as já, só como ruído, perturbação Do meu silêncio arrebatador
Quebram-se nas pontes os pilares dos sentidos A que me agarro em vão E despenho-me numa imensidão de incerteza Aguarela tépida a esfumaçar fios tremendos De tempo e tempos por adivinhar São cruzes ou são corvos Que os meus olhos cansados descobrem No horizonte tenaz da minha paisagem interior
Não consigo agarrar os contornos das coisas As muralhas são redes envenenadas por medos Dos ecos dos meus fantasmas febris
Os olhos dobram-se sob o peso dos séculos Catedrais dispersas de Deuses reais e irreais Que me rasgaram o peito em preces absurdas
Escuto agora a água a cantar numa fonte qualquer Que ainda sangra dentro de mim Centopeias melodiosas de sonhos
Este barco não tem remos Deitei-os fora Borda fora, como tudo o mais Os mantimentos A água doce As bóias Não, os livros, nunca Esses ficarão comigo E os cadernos e as canetas também
Às fotografias nunca dei importância São mentirosas Já estava cá, antes de vir Estarei aqui, depois de partir