Quando passavas na avenida Com o teu passo elástico Eu seguia a energia do teu corpo Com a gula de um gato A mirar um pires de leite A deslocar-se para longe Dos seus bigodes ávidos
Entretive-te no meu olhar Passeei-te pelas minhas palavras Senti o esforço dos teus músculos tensos A dominar o arco das tuas expressões Do teu ser inquieto, altivo e distante
Adivinhava-te no fogo dos olhos O calor da tua libido cintilante Estremecia colada à brusquidão Dos teus movimentos naturais Que em mim suscitavam desejos Que eu não queria assumir
Apetecia-me entrar nos teus sonhos Sentir cada centímetro da tua pele Sob os meus lábios Abocanhar-te a nuca quente Misturar-me contigo Numa dimensão alucinada Ser seiva e raiz Uivo e rugido Num bosque de outra era
E contudo, só as nossas mãos se tocaram Ao de leve, num momento breve, desajeitado Na troca de um livro De que ambos gostávamos E toda a paixão A real e a imaginária Esvaiu-se por entre Os Vagabundos de Gorki Adormeceu no colo de Teresa Raquin
Ana Wiesenberger (in Erotismus, Impulsos E Apelos)
Poema dito no programa "Amantes da Poesia" de Maria Isabel Rodrigues, na Popularfm
Nunca gravei as minhas iniciais Com as de outrem Num coração tosco Num tronco de árvore do jardim
Nunca o fiz também Nas carteiras de madeira da escola Daquele tempo Talvez nunca sentisse vontade De associar o meu nome a outro nome Como se soubesse de antemão Que tal nunca faria sentido
Vivi, antes, como uma árvore Que cresce em ramos Ao Longo das sucessivas Primaveras Que em si a força encerra
Expandi-me num processo de integração consentida Sem perder a identidade Acrescentei, apenas, à minha existência os eleitos Um filho, um marido, vários seres lindos de quatro patas Em que consigo ver o meu rosto oculto
E assim, perturba-me, por vezes A facilidade com que as pessoas se colam umas às outras Nu ma fúria desmesurada de criar sentido na ausência dele Da construção de um espanta-espíritos débil Para fazer face à morte – ao fim
Electrão Protão Neutrão Campos magnéticos perdidos na memória Guardados no tempo das batas brancas E do cheiro químico do laboratório Que nos transmudava os ânimos em festa
Os convívios de sábado à tarde na cantina do liceu E as primeiras meias de senhora; nylon, cor de pérola A arranharem-me as pernas desajeitadas Sob a saia de xadrez que me roubava o à vontade
Esse foi o tempo maracujá do exótico da descoberta De que os opostos se atraem e os iguais se repelem Embora isso só nos transtorne a vida e o estar
Mais tarde, a época dos espelhos, das luzes E dos cromados das viaturas de duas e quatro rodas Em que partíamos numa realização de som e de fúria Que para tantos terminou em cinza
E agora, no tempo ameno dos lilases Balança-se tudo na arca das recordações E o início da jornada, o cheiro de baunilha do jardim-escola Entranhado nas minhas narinas de menina Já não me parece tão inócuo Porque, afinal, delineou o meu caminho até ti Talvez porque o cansaço de ser vermelho e preto Me levasse a procurar o rosa que abarcava todos os nossos caprichos E birras Sem nunca deixar de ser um regaço de ternura, um reduto de apaziguamento A caverna apetecida onde os nossos olhos viviam as aventuras coloridas Que passavam no ecrã gigante da alvura da parede na nossa sala de cinema
Não sei, se foi o verbo nos teus lábios Que me prendeu o olhar, a atenção Ao teu porte carregado de ironia E distanciamento crítico pelas coisas
À frente do anfiteatro Antes e depois dos seminários Falávamos muito e a tua proximidade Apetecia-me de um modo diferente Difícil de catalogar
Talvez, não fosse bem isso Talvez eu me recusasse a fazê-lo Por recear, perder a dimensão Do que é sensato, normativo Ideal
No entanto, quando a idade avança E a memória dobra em nós A multiplicidade de momentos vividos Permitimo-nos, por vezes Vaguear para longe dos nossos pressupostos E resta-nos admitir a estranheza de tantos Eus Que fomos e deixámos pelos caminhos Unhas dolorosas que cortámos e voltaram sempre A crescer Na penumbra dos nossos esconsos Nos armários dos nossos quartos Que invadem a nossa vigília Quando apagamos a luz para descansar
Setembro dos ocres misteriosos A surpreenderem-nos pelos caminhos Por entre o calor do sol E o sal do mar que apetece Agora mais do que nunca Porque sentimos a ânsia de prender o Verão Não permitir que ele parta E leve consigo as horas despreocupadas Que vivemos Os risos das crianças, os olhares cúmplices Dos apaixonados libertos do jugo do trabalho Para amar
Setembro das minhas memórias doces De juventude Mãos enlaçadas em passeios inocentes ao pôr-do-sol A desenovelar sonhos por cumprir Destinos difusos ainda A ganhar contornos nas nossas vozes de esperança Nas nossas expectativas articuladas Na promessa que os adultos diziam ver em nós Ou não
Setembro do amor, da paixão natural Que tivemos de encerrar numa caixa de areia Por sermos néscios e acreditarmos Que os outros tinham razão Não era para cumprir E afinal, a vida reencontrou-nos em amizade De cicatrizes guardadas e esquecidas E eu penso nas horas pardas da minha meia-idade Que até estive com o Príncipe Encantado Mas não fui capaz de vestir a minha rebeldia de egoísmo E fiz-lhe ver, que eu não era a sua destinada Princesa
Na despedida trocámos prendas Tirei o meu colar de contas violeta do pescoço Ele despiu a camisola verde como a copa das árvores Que ambos sabíamos respirar Abraçámo-nos com olhos vítreos de dor E voz quebrada Em mim sempre o imperativo do verbo a ceifar o meu querer O meu desejo É melhor assim!
Ana Wiesenberger (02-09-2014) Imagem - Gustav Klimt
Há dias em que se ouvem gritos E portas a bater na casa da esquina Há dias em que se ouvem gritos E portas a bater na casa ao lado
Cada uma delas respeita a vez E não se põe à janela ou no jardim Para escutar melhor a ira da outra
Em vez disso, compreendem-se Em períodos de tréguas mútuas Quando se vêem, acenam-se Com sorrisos cúmplices Do alto dos seus casamentos Sólidos, pequeno-burgueses E sabem que um dia Os netos de uma e outra Saltitarão felizes nos relvados anexos E os avôs partilharão segredos de sucesso Para o churrasco de Verão Num convívio de amigos
Ela disse, que ele disse Que a amava Que dela cuidava Carinho, flores Olhos nos olhos Braços noutros braços Entrelaçados Nós de emoção Ou apenas paixão
Ele disse, que ela disse Que nele não confiava Que ele lhe mentia Que era o que não era E também o que parecia Querer ser
Ela exigiu palavras, desculpas Verdades absolutas De que aparentemente carecia Pontas soltas dos laços do absurdo Que ao longo do dia se desenrolavam Por entre os demais
Ele disse, que ela perdera o fio débil Da racionalidade ainda sustentada Por dentro da unidade psiquiátrica Que ambos cingia
Ela disse, que ele alucinava e vacilava Entre esgares de desprezo E SMS com promessas de amor íntegro
E os outros passaram a segui-los com o olhar Num entusiasmo de quem finalmente É parte de um elenco Num enredo propício a muitos episódios Com a satisfação de quem descobre Uma série de sucesso Um carrossel interminável de altos e baixos Como as vidas cheias do ecrã Capazes de os fazer olvidar O cinzento pardacento dos próprios dias