A chuva copiosa bate na minha janela E desata deste lado da vidraça Uma explosão de desejos Surgem piqueniques de livros Saltam as tampas das caixas dos bombons O radio assalta-me com um trecho da Flauta Mágica E a gravura a lápis de cor de Kokoschka Liberta os cantores imprevistos na minha sala
Foi-se a vontade de trabalhar Subiu no ar uma fragrância hilariante Que anima em mim resquícios de Alice à hora do chá Na deliciosa companhia do Coelho e do Chapeleiro Louco
E depois ela pára subitamente Sai da minha cabeça para ficar só lá fora e ser chuva trivial E eu volto à quietude do meu espaço com olhos de Dorothy De regresso ao Kansas A tentar convencer-me que a magia está dentro de nós E podemos sempre procurar o caminho para Oz Quando sentirmos a pequenez sufocante do nosso quintal Vedar a nossa alegria de sermos pássaros coloridos
Estou cansada de memórias De salas de espera arrumadas em cubos Como aquários de grilos sibilantes
Já mandei calar o Watson e o Sherlock Holmes Disse ao Eça que fosse govarinhar para longe E ao Brecht que fizesse uma revolução
Eu estou fatigada de ecos dentro e em redor de mim Já não encontro chaves à espera que eu lhes pegue Já não distingo a Fada Boa da Má E desisti de ir até Oz
Vou desintegrar-me em palavras vãs e audiências A condizer E fingir-me leda, completa, toda adaptada ao vazio Das vozes que me estreitam pretensamente perto E cada vez mais longe de mim
Vou exilar-me nas montanhas do sono e do sonho Onde a beleza ainda acontece e eu não tenho frio Nem fome de ser e estar Onde os seres pequeninos são mestres e sábios E sabem ouvir e ensinar Onde não há espaço para mentiras ou inverdades Onde a transparência das almas se entrelaça Numa harmonia expansiva de um arco-íris sem par E ninguém precisa de se justificar Para existir
Creio em fadas e dragões Em árvores que escutam E pedras que falam
Ilumino a trivialidade dos dias Com sorrisos do gato brincalhão Do país da Alice E converso com o espantalho Ao final das tardes de verão
Coitado, ele, por vezes, está cansado Pesa-lhe Oz nas horas de dúvida A fiar hipóteses de perigos vários A bruxa do Norte e as congéneres de Macbeth Trazendo morte e sangue aos desavindos Fogo letal ao seu corpo de feno Angústia de separação a povoar a saudade De Dorothy Naufrágios compulsivos sob a égide De Moby Dicks sedutoras Chaves perdidas para portas de sol urgentes
Creio em fadas e dragões Seres pequeninos que habitam os interstícios Dos nossos horizontes cerrados Vozes sábias de Deuses olvidados Castelos abertos de pontes suspensas para o mar Sereias traquinas a entreterem redes de peripécias Cavaleiros-sem-Cabeça a percorrerem eras a fio Numa demanda de coragem Vítima da servidão do amor
E por isso, nunca me aborreço De estar aqui ou ali Porque estou sempre aqui e também ali Deste e do outro lado do espelho
Rio-me com o Peter Pan Deixo-me encantar pelos amuos da Tinkerbell E escondo-me dos beliscões ásperos dos Muggles Na teia de Carlota Lá na torre inacessível da bela Rapunzel
Hoje gostava de me pôr em bicos de pés Em pontas, talvez E pintar no cinzento do céu Nuvens cor-de-rosa com sorrisos amarelos E olhos azul-bebé
Depois, ia buscar o resto dos lápis de cor E desenhava com cuidado Um arco-íris sobre o mundo Talvez, assim, as pessoas acordassem Para a beleza, para a paz Talvez, assim, eu conseguisse fazer alguém Feliz Mesmo, se fosse só um minuto Um segundo fugaz, como um gato tímido
Em seguida, se ainda tivesse tempo e energia Envolvia o cotão de neve em bolas de sabão E cristalizava-as no ar Para que nunca rebentassem e fugissem de nós Com a nossa infância e os nossos sonhos
E decerto, que nesta paisagem maravilhosa Haveria ruas e avenidas repletas de gente sorridente A passear os seus cãezinhos e gatinhos De que só se separariam Quando a morte lhes cortasse o elo
Nos parques e nas escolas As crianças viveriam as horas com deleite E de mãos dadas com o amor bem definido Entre as tarefas de crescer e brincar De aprender e de ser
E à noite, não haveria ninguém abandonado Numa praça, num banco de jardim, num canto Ao frio, à fome e à sede Votado ao desespero De não ter amanhã
Neste cenário, ricos seriam só aqueles Que mais podiam partilhar Sem ofender na dádiva Sem engodo oculto Num abraço forte e pleno Fraternidade
Ana Wiesenberger 08-02-2013
Imagem - (efeitos especiais registados no livro encontrado de Herman Schultheis)
Esculpi-te na minha névoa Palmo a palmo Senti os teus ombros Nascerem das minhas mãos
Trabalhei, depois A densidade muscular do teu peito A linha seca dos quadris As nádegas perfeitas As pernas fortes como colunas Os pés largos e atléticos
Fiz, então uma pausa Para contemplar a obra em curso E senti-me vã e trivial Um corpo de Amor não tem rosto E não sei, se terá sexo Alma terá com certeza
E então, comecei de novo De um bloco de pedra alva Surgiu um vulto andrógino Magnífico Não era um homem Não era uma mulher Era um ser indistinto E contudo, tão distinto nas suas feições Propensas à ternura, à compreensão À companhia
Os olhos eram límpidos Sem medo de ver Os ouvidos bem delineados Sabiam escutar E a boca suave Preparada para deixar fluir Palavras que são ideias e elos Isenta de cinismo
Os braços eram sólidos De uma solidez capaz de erguer Alguém do chão Mas nunca de derrubar
O tronco cinzelado com cuidado Poderia ser seio de alimento De um lado Do outro, uma lisura maciça A prometer abraços, conforto E unidade
As pernas eram ágeis Para correr livre como as gazelas Os pés proporcionados Para sustentarem longas horas de pé Em assembleias de cidadãos Concretizações de uma democracia nobre
E o sexo, não era sexo no singular Para ser feminino e masculino Num só ser De mãos dadas Vocacionado para amar
Fico ébria de tanto querer sonhar Pesam-me os dias cinzentos E a inquietude enlouquece-me Ahab rendido a uma Moby Dick Sempre longínqua
Desfio planos de evasão impossíveis Que não me convencem a acarinhá-los Pequenos nichos de encontros De corpos emaranhados Numa Voz Subterrânea Que alcançou a luz real
E fico triste e envergonhada Por não conseguir tocar o mosto A madureza de uma maçã por saborear Votada à eternidade do meu medo De sentir Recatada, sem enlaçar as mãos à beira do rio Que eras tu E que eu me recusei a ver
Mas tudo isso, já são verdes de outrora Que agora amarelecem no Outono Do que quase consegui ter E deixam-me na nostalgia dos caminhos Que poderia ter percorrido Se não fora A imensidão ferida das asas sacrificadas Na senda de um amor absoluto e natural
Não viria até mim Montado num alazão digno de alta caudelaria, Mas podia surgir Numa moto de alta cilindrada, Ao volante de um jipe verde sem capota, Daqueles, que já fizeram muitas milhas e quilómetros
Seria alto e bem constituído, De ombros largos e expressivo A convidar-me a mergulhar Na profundidade verde ou azul do seu olhar
Saberia muito de moléculas e células, De animais, de plantas e de doenças E gostaria de dormir ao ar livre, em tendas, Em qualquer latitude
Saberia contar-me histórias e estórias E eu nunca me cansaria de o escutar
Faríamos muitas viagens, Mas, também, teríamos um lar, algures Com baloiço no alpendre e serenidade Ao tombar do dia
Talvez, também, tocasse piano ou violino Para nos encher a casa de beleza, Mas nunca perderia um minuto A ver jogos de futebol, em frente à televisão Teríamos filhos ou não, Bichinhos, esses, sim, com certeza E nunca teríamos medo de esbanjar tempo Para nos encontrarmos Numa tela de principiante, Num bordado simples, Numa melodia Ou num poema
Tenho sede de fantasia E do seu esplendor De Midsummer’ Night Dream, Alice In The Wonderland E Alice Beyond The Looking-Glass
De encontros no bosque E estrelas cintilantes A brilhar no meu vestido da Noite
De pedras onde o musgo lavra a memória De duendes e gnomos De gigantes e dragões A tecerem muros de verde Para barrar o teu caminho
Do piar das aves nocturnas A adivinharem destinos escarlate No beijo sôfrego dos amantes
Da luz da aurora a desnudar A fealdade do teu semblante Coberto pelo encantamento de Orfeu A acordar em mim as asas céleres de Pégaso Para regressar ao meu leito