O dia começa em bruma Resquícios de uma Alcácer-Quibir Sempre presentes Sempre por resolver A cortar, dilacerantes A pretensa paz por edificar em mim Horas possíveis de construção de sentido
As vozes do passado são muitas E os seus gritos sobrepõem-se ao presente Tornam-me impossível conciliar Os caminhos seguidos, ditados pela razão megera Que me algemou ao sofrimento constante Feridas abertas e purulentas dos sonhos sacrificados Eternamente cativos na cave da minha vida E só libertados em memória dolorosa Quando a tempestade me trespassa E me dá ganas de assassinar o real Por ser uma mentira torpe
O dia começa com um travo estranho, bolorento Que me causa náusea e me exila da vontade do suster Substância que o corpo sossegou numa agonia bafienta A amordaçar o espírito no Não-Ser E o único rumo, que ainda me resta É Ser através da tinta no papel amigo Aranha triste a um canto do tempo incerto A aguardar a morte na sua teia breve
O cinzento voltou Como se nos quisesse recordar Que o dourado do Sol na paisagem É uma bênção servida com parcimónia
Aborrecemos os olhos Na ausência da luz do Astro-Rei A paisagem já não nos prende Numa suspensão de euforia
Voltámos ao mundo dos objectos Uma cadeira, um livro, uma mesa O pó que nos submerge de mansinho E não vemos Os interruptores que pressionamos Enquanto deslizamos pelas divisões complexas Das nossas vidas Como se também accionássemos a nossa atenção A nossa concentração A nossa capacidade de realizar isto e aquilo Que temos de fazer Ou que nos convenceram a dar importância
Quando dormimos E os nossos olhos estão fechados É como se estivéssemos em modo off - desligados E quando os abrimos, passamos a estar em on - ligados
Quando morremos Ficamos de olhos escancarados e fixos O que prova, que não estamos a descansar Nem a funcionar Estamos perante o colapso do sistema Já não é possível ligar, nem desligar
Hoje é Halloween! Exorcizemos os nossos medos Sob o negro das máscaras Cortejo de bruxas e morcegos Gadanhas, garras e dentes exorbitantes De vampiro
Hoje é Halloween! No calendário Celta, fim do ano Pesemos as nossas dúvidas Encaremos as nossas dívidas Perante a condição humana Que vestimos A grandiosidade de Deuses Que almejamos
Hoje é Halloween! Façamos a paz com os nossos mortos Anulemos os rancores e os remorsos Permitamos, nesta noite, a proximidade indefinida Da Morte e da Vida
Hoje é Halloween! Tomemos parte na festa das crianças Que elas possam colher na hora aberta A dádiva da escolha do caminho Do doce e do amargo, do susto ou da harmonia Na convivência com os demais
Hoje é Halloween! As árvores despidas de folhas Que amolecem os nossos passos Anunciam com fervor ancestral A Morte e a Ressurreição da Vida
Ana Wiesenberger 31-10-2014
Imagem - foto tirada na biblioteca da minha escola há uns anos