Passos quebrados Rostos tristes Olhar nu de esperança Assim vai o meu povo Vergado a injustiças Sebentas do passado Renovadas, mascaradas Num registo de democracia
É preciso inventar um caminho Mas só a luz da clareza Da informação e da denúncia Nos poderão levar a outro rumo
Se permanecermos alheios aos conluios Nas trevas da incerteza e da indiferença Nunca seremos mais do que animais inocentes Condenados a destinos vis Sempre na rota de um matadouro imenso Onde desaguam a falência dos nossos sonhos E daqueles que nos são queridos
É fundamental, não cedermos ao cansaço E à dormência Que nos faz fechar os olhos na agonia De quem já sente Que nada vale a pena
Portugal pequenino Minha sereia comprometida Na dualidade das serras e do oceano No linguarejar cantado de uns Arrastado de outros De erres pronunciados De vogais finais inaudíveis De redes de pesca Mescladas de bois potentes Na lavoura de outros dias Intervalada por serões De Xailes negros E mulheres feiticeiras A carregarem a noite Nas traves do Fado
Portugal pequenino Das naus corajosas a descobrirem Horizontes Dos sonhos de grandeza em terras De Além-Mar Das vozes viúvas, órfãs de fé Em cais de angústia Dos filhos, dos maridos Que um regime exilou Das procissões imensas a alumiarem As ruas com velas de promessas Das conversas à margem da lei Nos cantos nem sempre livres dos cafés Dos livros passados em segredo De mão em mão Dos encontros clandestinos A tecerem manobras de construção De uma liberdade nova Para um povo amordaçado
E o destino cumpriu-se E sonhámos ser asas Pão, educação para todos Dignidade e paz Mas sossegámos demais Confiámos, inocentes Que o rumo permaneceria E não vimos os sinais Deixámos que os filhos E os netos dos algozes do passado Se infiltrassem nas malhas da democracia Que se emparceirassem com os seus iguais Para minar as nossas vidas Nos meandros da economia Nas parcelas do poder Roubadas sob a nossa desatenção A nossa apatia A nossa vontade de acreditar Que Abril fluiria sempre
E agora, meu Portugal pequenino Voltámos a chorar a ausência Dos nossos descendentes que emigram A dor de não sabermos como pagar As nossas contas A tristeza de vermos a nossa soberania Refém de sentenças estrangeiras A raiva de nos sentirmos assolados Por uma corrupção a que a justiça Não põe cobro
Portugal, meu Portugal pequenino É urgente que as tuas gentes inundem as Praças Que os nossos gritos sejam farpas Que o nosso hino traje de novo A transparência desejada O fim dos conluios que nos arruínam A solidez da veracidade nos caminhos
Ana Wiesenberger (in Portugal, Meu Amor e Antologia 40 Anos, 40 Poemas) 28-07-2013
Todos somos árvores Diz Raul Brandão em Húmus E se assim for, em vez das sete idades Do Homem de Shakespeare Assumimos as quatro estações Num calendário de vida
Como se a infância fosse a alegria Da Primavera a despontar em nós Uma multiplicidade de capacidades Um rompimento verde a ganhar forma
Depois, na euforia do Estio Já somos frondosas, vitais E apetecíveis Num esplendor de querer adulto A amadurecer horas que parecem Intermináveis
E contudo, o Outono apodera-se de nós Aos poucos, sorrateiro E transforma o nosso viço Numa paleta mirabolante de ocres e castanhos Que se despedem de nós numa carícia breve Para abraçarem o solo
E por fim, a invernia consome-nos com ventos Frios em hastes secas, tristes Doentes terminais saudosos de Sol Já destinados ao mundo das sombras
Mas o ciclo da Natureza perpetua-se E as árvores, ao contrário de nós Renovam o alento quando o tempo voltar a aquecer Nós só o poderemos alcançar nos resquícios Do nosso sopro na vontade dos que amámos E foram próximos de nós
Hoje ouvem-se os pássaros a cantar E há sol, por isso é Primavera Amanhã talvez seja Inverno como ontem Ou Primavera como hoje No norte da Europa vive-se esta incerteza Nos dias
No sul é diferente O mal-estar esconde outras razões mais profundas É a fome, o desemprego, a raiva perante a injustiça E também a mornidão Tanta gente que não vê ou pensa Ou não quer ver, nem pensar Porque é incómodo ou porque a realidade os levaria A subtraírem-se ao medo de agir E o desfiladeiro derradeiro lhes acenasse com a força Com que nunca viveram os dias
Os pássaros continuam a cantar Algumas raparigas nigerianas já foram resgatadas Há muitas ainda para recuperar Na Nigéria longínqua, na Ásia distante E nas gaiolas dissimuladas do velho continente Tão civilizado e tão cruel
É melhor recordar Shakespeare em MacBeth Não nos entreguemos a tais pensamentos São de enlouquecer E porém, o leque das horas abre sempre mais Recantos esconsos que pretendemos não ver E vemos com os olhos petrificados de angústia Com ânsias de erguer tempestades Fazer acontecer mudanças Colorir o espaço com o punho individual Finalmente útil Finalmente humano
Portugal, meu amor Meu destino por cumprir Sebastião amordaçado na memória Mensagem num horizonte sempre longínquo Gaivota triste em cais de fome
Portugal, meu amor Minha pátria dos que partem E dos que esperam Por melhores dias Que tardam em chegar
Portugal, meu amor Das gentes desavisadas Das gentes desabituadas Da coragem de dizer NÃO
Portugal, meu amor Do povo amortalhado em tristeza Confuso no seu viver dos dias Que chora para dentro Envergonhado demais para confessar a dor
Portugal, meu amor Liberta-te do Fado Solta o teu grito Dobra novamente o Cabo das Tormentas Constrói a Boa Esperança com afirmação Derrota os conformismos malfazejos Os brandos costumes Cabresto infame da razão e do caminho Silêncio de vítima por preencher com vontade E determinação
Portugal, agarra a hora É sempre mais tarde Mas nunca é tarde demais
Gostava de acreditar na mudança Na força das vozes No eco das palavras Na determinação das massas Em dar corpo A um novo rumo
E mesmo assim, vacilo Em intervalos de entusiasmo E receio do mesmo
Tenho medo, que manobrem o meu povo Com Mesuras de ilusionista A fazer crer aos cidadãos revoltados Que o pão lhes será restituído Na forma de números cifrados Previamente preparados para apresentar Depois da ira da nação
Será, que continuamos a ser Marionetas bem articuladas Nas mãos dos todo-poderosos de argúcia Que se entretêm a aplaudir os nossos passinhos Por eles medidos e calculados
Será, que nos vão vencer de novo Ao fazer-nos pensar que algo foi conquistado Para desenovelarem, tranquilos Novos roubos camuflados Garras frescas nas nossas gargantas crédulas
Não. Não pode ser Eu quero crer no rosto de Portugal Triste Exausto de escravidão Mas de olhos abertos, lúcidos Demasiado despertos Para se deixarem enganar mais uma vez
17-09-2012 Ana Wiesenberger (in Portugal, Meu Amor)