Há alturas em que temos de parar de ser Para sentir Arrumar o corpo num sítio, aquietá-lo Imobilizá-lo e permitir que o olfacto E a visão suturem o vazio instalado
Suspender a inquietude da afirmação do ego Atar a leveza da borboleta a uma pedra E esperar pela profundidade do musgo Dos nossos pensamentos mais íntimos Sempre ocultos nos passos desaustinados De um quotidiano febril em que se faz O que tem de ser feito Em que se olvida o querer A voz subterrânea cada dia mais amordaçada Sufocada pela realidade invasiva A anular o que há de singular em nós
De tantas pontes construirmos Para chegarmos aos outros Esquecemo-nos da necessidade de olharmos Para dentro e lermos a nossa verdade Que pode não ser admirável, qual obra de arte Mas é a nossa raiz, a nossa marca Que nos distingue dos outros A nossa respiração
Setembro dos ocres misteriosos A surpreenderem-nos pelos caminhos Por entre o calor do sol E o sal do mar que apetece Agora mais do que nunca Porque sentimos a ânsia de prender o Verão Não permitir que ele parta E leve consigo as horas despreocupadas Que vivemos Os risos das crianças, os olhares cúmplices Dos apaixonados libertos do jugo do trabalho Para amar
Setembro das minhas memórias doces De juventude Mãos enlaçadas em passeios inocentes ao pôr-do-sol A desenovelar sonhos por cumprir Destinos difusos ainda A ganhar contornos nas nossas vozes de esperança Nas nossas expectativas articuladas Na promessa que os adultos diziam ver em nós Ou não
Setembro do amor, da paixão natural Que tivemos de encerrar numa caixa de areia Por sermos néscios e acreditarmos Que os outros tinham razão Não era para cumprir E afinal, a vida reencontrou-nos em amizade De cicatrizes guardadas e esquecidas E eu penso nas horas pardas da minha meia-idade Que até estive com o Príncipe Encantado Mas não fui capaz de vestir a minha rebeldia de egoísmo E fiz-lhe ver, que eu não era a sua destinada Princesa
Na despedida trocámos prendas Tirei o meu colar de contas violeta do pescoço Ele despiu a camisola verde como a copa das árvores Que ambos sabíamos respirar Abraçámo-nos com olhos vítreos de dor E voz quebrada Em mim sempre o imperativo do verbo a ceifar o meu querer O meu desejo É melhor assim!
Ana Wiesenberger (02-09-2014) Imagem - Gustav Klimt
O vazio prolonga as horas Estica os minutos em não-ser Não-estar, não-ver, não-sentir
Se ao menos, ao acender uma vela Comunicasse a vontade de luz Orientação numa escuridão medonha Que me atormenta Incompreensível para um ser da noite
O que paira sobre mim é a dor Os dentes aguçados do que não quero Assumir ou compreender
Sempre quis inventar caminhos Sempre fiz trilhos, vias abertas E agora pareço um morcego embriagado De estranheza A embater nas esquinas dos muros Esquecido de um radar ancestral Que lhe daria a paz dos percursos Conhecidos, apetecidos
Amanhã permanecerá ainda O grito contido, estrangulado Desabituado de habitar a garganta
Ela disse, que ele disse Que a amava Que dela cuidava Carinho, flores Olhos nos olhos Braços noutros braços Entrelaçados Nós de emoção Ou apenas paixão
Ele disse, que ela disse Que nele não confiava Que ele lhe mentia Que era o que não era E também o que parecia Querer ser
Ela exigiu palavras, desculpas Verdades absolutas De que aparentemente carecia Pontas soltas dos laços do absurdo Que ao longo do dia se desenrolavam Por entre os demais
Ele disse, que ela perdera o fio débil Da racionalidade ainda sustentada Por dentro da unidade psiquiátrica Que ambos cingia
Ela disse, que ele alucinava e vacilava Entre esgares de desprezo E SMS com promessas de amor íntegro
E os outros passaram a segui-los com o olhar Num entusiasmo de quem finalmente É parte de um elenco Num enredo propício a muitos episódios Com a satisfação de quem descobre Uma série de sucesso Um carrossel interminável de altos e baixos Como as vidas cheias do ecrã Capazes de os fazer olvidar O cinzento pardacento dos próprios dias
O pássaro A quem se jura amar Por lhe proporcionar uma gaiola imensa Também testa com a dor das suas asas cortadas Os limites da sua pretensa liberdade
Canta. Não canta Come. Não come Inquieta-se como se o gato Que não vê, já o tivesse devorado Como se habitasse o interior desse gato medonho Que o engoliu inteiro E não lhe deu o tempo necessário Para perceber que estava morto
O pássaro Muda de poleiro Para cima, para baixo Pára. Escuta o silêncio Será silêncio ou um rumorejar de algo Que não conhece Talvez as batidas apressadas do seu coração Que afinal não morreu Que afinal ainda amanhece transparências húmidas Nas árvores que nunca viu Nem sentiu Ou serão remoinhos de sonhos emprestados Que alguém depositou na sua gaiola amortalhada E esquecida Como uma folha de Outono Abandonada num trilho distante Do parque ameno Onde as famílias fazem que conversam E julgam que são felizes
Foi à cozinha Abriu a gaveta dos talheres E colheu a sua faca preferida
Ligou a música na sala Sentou-se e aproximou o gume perfeito Da epiderme suave do seu pulso Fê-lo deslizar por um instante E viu o fiozinho de vermelho vivo Assomar-se tímido Uma janela ínfima no moreno da carne
Depois ergueu-se, já na convicção firme Da descoberta dos seus desejos íntimos Há muito baralhados Dirigiu-se ao escritório dele Deparou-se com a ordem das estantes; Décadas e décadas de música catalogada Um rigor de cientista coleccionador de órgãos Amostragens de patologias organizadas Ao longo de uma vida de dedicação e esmero
Respirou fundo e lançou-se ao trabalho Passou a noite a abrir as caixas dos CDS E a desenhar com a faca metódica Um Z que lhe apareceu natural e espontaneamente Como se bramisse a espada de Don Diego de La Vega Numa promessa de justiça cumprida
Antes de fechar a porta, pousou os olhos no jornal dobrado E achou por bem, deixar-lhe um sinal Um prenúncio de inquietação - um aceno breve E enterrou nele a faca copiosamente Até o transformar numa saia de tirinhas de letras Que uma criança poderia querer usar Para se divertir com os amigos Num dia de Carnaval
Ao deambular por Sesimbra invade-me A estranheza de ter entrado numa casa de espelhos Esforço-me por não olhar em redor Concentrar-me no momento presente Todavia, é quase impossível ignorar A unidade fragmentada
Oiço-me adolescente por entre a família A atrasar o pedido do almoço no restaurante Por não gostar de comer isto ou aquilo Ou a perguntar detalhes quase absurdos Sobre o modo de confecção dos pratos
Vejo-me a respirar uma juventude Conscientemente rebelde e sedutora Entregue à dança sob os reflexos cromados Do tecto da discoteca
E depois, ainda a outra, já mulher Ao jugo da carreira e da maternidade submetida A tentar conciliar a obediência à responsabilidade E a liberdade interior A sentir o sonho afastar-se devagarinho
E por isso, quando aqui estou Passo por mim em cada canto Suporto paciente o peso da dor Vivo o crime e a automutilação da alma, do ser Já sem revolta, só tristeza feita de xaile à beira-mar Num cais que outrora devia ter abandonado
Janelas de sol descobrem no casamento cinzento Do céu e do mar Rasgos de luz e beleza a quem o rugir das ondas Empresta interstícios indecifráveis de raiva e dor Num concerto monumental acontecido E sempre novo sob a ogiva da terra mãe Doce alento que me dobras na desesperança Na fealdade fútil dos dias O encanto da maresia ancestral que sou eu E me deslumbra numa promessa de unidade perdida Num regresso sempre temido Sempre desejado
Estou cansada de memórias De salas de espera arrumadas em cubos Como aquários de grilos sibilantes
Já mandei calar o Watson e o Sherlock Holmes Disse ao Eça que fosse govarinhar para longe E ao Brecht que fizesse uma revolução
Eu estou fatigada de ecos dentro e em redor de mim Já não encontro chaves à espera que eu lhes pegue Já não distingo a Fada Boa da Má E desisti de ir até Oz
Vou desintegrar-me em palavras vãs e audiências A condizer E fingir-me leda, completa, toda adaptada ao vazio Das vozes que me estreitam pretensamente perto E cada vez mais longe de mim
Vou exilar-me nas montanhas do sono e do sonho Onde a beleza ainda acontece e eu não tenho frio Nem fome de ser e estar Onde os seres pequeninos são mestres e sábios E sabem ouvir e ensinar Onde não há espaço para mentiras ou inverdades Onde a transparência das almas se entrelaça Numa harmonia expansiva de um arco-íris sem par E ninguém precisa de se justificar Para existir