Gostava de ligar o número de um amigo Dizer-lhe, que dói Sem saber dizer, onde dói Sem ter de fazer acontecer Explanações ocas, metafísicas Falsas verdades vis Enceradas em bom senso E vontade de ser Qualquer coisa amena E exilar no negrume da noite Os morcegos da alma Eternamente presa de uma inquietude secular
Gostava de ouvir grinaldas de cor e afecto em arco-íris Alongados até mim desde o outro lado da linha Mas o tempo e o espaço são lugares que se entranham E nos convencem Que as portas não são para abrir
Escrevo perante o rosto da noite Num hotel que de tão familiar Me faz crescer em estranheza
Escrevo à luz do cansaço saudável dele Que lhe permite dormir sem químicos Virgem ao mundo dos fármacos Em que os outros existem em On e Off
Escrevo na companhia do vinho tinto do copo Que felizmente me dobra a loucura Me afaga a solidão E me diz, que devia encostar a cabeça à almofada Como se eu fosse um cabritinho jovem e desajeitado A quem a mãe explica a necessidade de descansar No verde da planície para aguentar a jornada de amanhã
Escrevo na voragem dos que não têm companhia Mas se fingem acompanhados pelas páginas dos outros A que se agarram, desesperados de mitigar a sede endémica Do deserto fabricado com a ausência consentida ao longo dos anos Em que se afastaram dos demais
Este é o murmúrio das horas paradas O rebuliço invisível do pântano Em que os nenúfares moribundos Nos pedem para calar os gritos de lodo
Esta é a noite que canta a uma só voz A canção daqueles que por si ou por destino São os desenraizados do bem-estar