O dia começa em bruma Resquícios de uma Alcácer-Quibir Sempre presentes Sempre por resolver A cortar, dilacerantes A pretensa paz por edificar em mim Horas possíveis de construção de sentido
As vozes do passado são muitas E os seus gritos sobrepõem-se ao presente Tornam-me impossível conciliar Os caminhos seguidos, ditados pela razão megera Que me algemou ao sofrimento constante Feridas abertas e purulentas dos sonhos sacrificados Eternamente cativos na cave da minha vida E só libertados em memória dolorosa Quando a tempestade me trespassa E me dá ganas de assassinar o real Por ser uma mentira torpe
O dia começa com um travo estranho, bolorento Que me causa náusea e me exila da vontade do suster Substância que o corpo sossegou numa agonia bafienta A amordaçar o espírito no Não-Ser E o único rumo, que ainda me resta É Ser através da tinta no papel amigo Aranha triste a um canto do tempo incerto A aguardar a morte na sua teia breve
A ausência do mar-pátria Desata em mim miríades de delírios Um estar por aqui e já não estar Um quase querer abandonar a vida Por não poder respirar
A alma confinada nesta saudade imensa Sarcófago onde adoece a esperança Corredor lúgubre e infinito Que me faz acreditar não haver luz Para banhar os meus sentidos
Erro os olhos à volta E nada vejo que os prenda Adoeço presa de ecos e visões absurdas Como se por detrás das minhas pupilas Vivessem postais ilustrados de cores berrantes A imporem etiquetas a eito em paisagens Como se uma cidade, um rio, um país Fosse aquilo E a minha capacidade de sonhar Estivesse amortalhada pela lente do medo De saber-se prisioneira de um tempo mudo Sem contornos, sem prenúncio de beleza Um arco-íris a acontecer numa gravura De uma infância há muito vivida Talvez, lamentavelmente nunca esquecida Um desejo de retocar molduras do passado Com o sangue do sacrifício de um presente Sempre adiado, cada vez mais irreal Como uma vida passada Que se pensa ter vivido Dimensão suspensa de uma Atlântida renovada Em anéis enfeitiçados por um Deus louco Por lágrimas humanas
Ao deambular por Sesimbra invade-me A estranheza de ter entrado numa casa de espelhos Esforço-me por não olhar em redor Concentrar-me no momento presente Todavia, é quase impossível ignorar A unidade fragmentada
Oiço-me adolescente por entre a família A atrasar o pedido do almoço no restaurante Por não gostar de comer isto ou aquilo Ou a perguntar detalhes quase absurdos Sobre o modo de confecção dos pratos
Vejo-me a respirar uma juventude Conscientemente rebelde e sedutora Entregue à dança sob os reflexos cromados Do tecto da discoteca
E depois, ainda a outra, já mulher Ao jugo da carreira e da maternidade submetida A tentar conciliar a obediência à responsabilidade E a liberdade interior A sentir o sonho afastar-se devagarinho
E por isso, quando aqui estou Passo por mim em cada canto Suporto paciente o peso da dor Vivo o crime e a automutilação da alma, do ser Já sem revolta, só tristeza feita de xaile à beira-mar Num cais que outrora devia ter abandonado