Vizinhas Há dias em que se ouvem gritos E portas a bater na casa da esquina Há dias em que se ouvem gritos E portas a bater na casa ao lado Cada uma delas respeita a vez E não se põe à janela ou no jardim Para escutar melhor a ira da outra Em vez disso, compreendem-se Em períodos de tréguas mútuas Quando se vêem, acenam-se Com sorrisos cúmplices Do alto dos seus casamentos Sólidos, pequeno-burgueses E sabem que um dia Os netos de uma e outra Saltitarão felizes nos relvados anexos E os avôs partilharão segredos de sucesso Para o churrasco de Verão Num convívio de amigos Ana Wiesenberger 29-07-2014 Imagem- René Magritte
De costas voltadas para vida Passamos os dias entre ninharias prementes E mal-entendidos que criamos No nosso afã de fazermos de conta Que somos importantes E ignoramos o peso das horas Que não vivemos Para ver, compreender, crescer Até que tudo nos parece sórdido, pardacento Ignóbil e fútil Quando nos lembramos de agarrar O fio dos dias É em arranques inconsequentes Numa vontade infelizmente intermitente De sermos singulares e verticais E o tempo desliza Os anos passam sem acenarem E quando damos por nós Já avistamos o cais derradeiro E descobrimos que não fomos Não fizemos Não deixámos nada a assinalar a nossa presença Num território que por décadas Nos foi dado ocupar É urgente aprendermos a vestir convicções Nos nossos gestos, nos nossos passos Não desperdiçar a oportunidade de sermos voz De sermos balada, sinfonia Em vez de requiem adiado Na flor das idades Que julgámos viver Ana Wiesenberger 22-03-2014 Imagem - Jiri Borski
As pessoas sós vivem no silêncio
Ou no ruído impessoal
Nas vozes que moram no radio
E na televisão
Na harmonia da música
Que escolhem ou não escolhem
Mas escutam
Em horas improváveis ou não
As pessoas sós vivem, às vezes
Em bairros virtuais
Onde as campainhas são teclas
E as saudações, ícones engraçados
A abrir e a fechar sorrisos
E abreviaturas cómodas
Que nada querem dizer
Mas a que se habituaram
As pessoas sós
Procuram outras pessoas sós
Para se sentirem acompanhadas
E depois surpreendem-se
Pelo passo vão
Pela distância insuperável
Abissal
As pessoas sós desaprendem
A companhia
Mumificaram no eu
Os outros ecos
Exilaram-se do toque humano
Deixam cair as mãos ao longo do corpo
Numa higiene de separação sem ponte
Isenta de abraço
As pessoas sós
Coleccionam muitas noites de vácuo
De lágrimas, talvez
E acostumaram-se a dar uma volta pela casa
Antes de recolher ao leito
Precisam de verificar portas, janelas, botões
De electrodomésticos
Antes de fecharem o dia
Com uma pressão brusca no interruptor da luz
E a esperança que o sono lhes traga o sonho
Do que não conseguiram ser
Ana Wiesenberger
11-04-2013
Imagem – Ray Caesar
Desejo que o Ano Novo
Aguce os sentidos do meu povo
Que ele possa estar mais atento à realidade
E não se deixe alienar pelas tabelas futebolísticas
E enredos de pacotilha no ecrã da sala
Desejo que o Ano Novo
Rasgue nas mentes a urgência de agir
A vontade de dizer NÃO
A capacidade de investir contra o logro
A coragem de saber ver, ouvir, ler
E desmantelar as tramas a que nos sujeitam
Desejo que o Ano Novo
Alumie nos nossos semblantes
A fome da verdade
A necessidade de condenar a mentira
A força de lutar pela afirmação do nosso valor
De ser hino e de ser História
Desejo que o Ano Novo
Faça crescer em nós a empatia
A consciência de sermos irmãos na fome e na dor
E nos dê a solidariedade veemente
Para sermos nobres nos corações
E coniventes nas acções do quotidiano
Desejo que o Ano Novo
Seja água primordial que lave dos nossos olhos
Das nossas mãos, dos nossos corpos
A poeira da covardia, da demissão de ser e fazer
E fortaleça nas nossas almas
A convicção da nossa responsabilidade cívica
Da premência de intervir sem medos
E não pactuar com a injustiça e o esmagamento
Dos mais fracos
Desejo que o Ano Novo
Não seja a perpetuação do mal a acontecer
Ao nosso lado indiferente, acomodado ou desatento
Que depois nos surpreende em títulos dolorosos
De pedofilia, violência familiar, maus tratos e abandono;
Seres humanos e animais ultrajados na sua condição
Vergados a pulsões doentias de quem só ama a morte
E a destruição
Desejo que o Ano Novo
Signifique nas nossas vidas
Um verdadeiro despertar
Para a dimensão de SER
Ana Wiesenberger
31-12-2013
Imagem - Thomas Moran
No meu bairro do Facebook
Encontro quase tudo
De que preciso
Há carinhas risonhas e mensagens
De encantar
Até mesmo as Boas-Noites
Alguém gosta de dar
No meu bairro do Facebook
Posso circular a qualquer hora
E se estiver atordoada nas ruas
Há sempre alguém
Que me vem ajudar
Gosto do meu bairro do Facebook
Onde os humanos são mesmo humanos
E há tempo para conversar
Gosto do meu bairro no Facebook
Onde as casas são coloridas com bonecos expressivos
E as gentes têm preocupações sociais e morais
Que pediram a outros de empréstimo
Como quem vai buscar salsa à vizinha
Gosto do meu bairro no Facebook
Porque lá, todos os dias, são dias de festa
E a música é boa
Há grinaldas de solidão a entrelaçarem-se
Em nós de atenção
A toda a hora
E não há recolher obrigatório
Para reunir a força
Para a tarefa do amanhã
Gosto do meu bairro do Facebook
Nos dias úteis, nos feriados e nos Domingos
Nas horas de ponta do vazio comum
Em que nos encontramos
E nos minutos tardios
Em que os vizinhos aparecem
Porque o sono ou a vontade de dormir
Estão ausentes
E eles vêm para a soleira das portas multicores
Ver quem passa
E se alguém para
Para lhes achar graça
08-06-2012
Ana Wiesenberger
Imagem - George Grosz
Ide ao teatro
Sentai-vos na plateia
Segurai o vosso programa
Entre as mãos curiosas
A antecipar o deleite da representação
Ide ao teatro
Reservai os vossos lugares
Como burgueses responsáveis
Como funcionários polidos
Na cautela e na previsão
No sossego do que já está no papo
Antes de estar
Ide ao teatro
Contai na fila para a bilheteira
As vossas moedas inquietas
Num porta-moedas arejado
De artista, intelectual pobre
Mas culto
Sem meios e contudo, com mais
Do que os demais
Ide ao teatro
Sentai-vos na plateia
Assimilai do palco o vosso terreiro
Vivei na exuberância dos gestos e das falas
Aquilo que calais nas vossas vidas
Aquilo não consentis em mostrar aos outros
Aquilo que desejáveis para os vossos intentos
Se a bravura de ser vos tivesse abençoado
Ide ao teatro
Deliciai-vos com os cenários e o guarda-roupa
Com a estranheza ou a confirmação do texto
Na comunhão dos vossos horizontes
Na quimera do vosso silêncio
No aplauso da viagem partilhada
Que ainda será, depois da luz
Dos vossos bilhetes
Ana Wiesenberger
16-08-2013
Imagem - Pablo Picasso
Detesto os traseiros gordos
Conformados, afivelados
Entre cupões de promoção
De supermercado
E telenovelas depois do jantar
Detesto-os quando passeiam
No parque
A empurrar carros de bebé sorridentes
Crianças bem vestidinhas
E bicicletas de rodinhas
Com homens a condizer
Ao lado
Detesto-os no masculino
E no feminino
Na arrogância da sua pobreza
De espírito
Nos vincos das calças certinhos
No passo de procissão
Para o café
Em tarde de Domingo
Detesto-os na alegria gordurenta
Dos almoços depois das compras
No Mac Donalds
Nos planos do jantar em casa da mãe
Ou da sogra
Nas conversas animadas na esplanada
Nas frases repetitivas
Nas emoções dos remates e das perícias
Do futebol
Detesto-os porque não pensam
Nem querem pensar no seu país
Não intervêm na vida cívica
Não lêem os jornais
Votam à toa ou à tona
Dos seus iguais
E condenam-nos à miséria
À corrupção
Ao enterro da economia
Ana Wiesenberger
Imagem - George Grosz
Há pessoas tão queridas
Tão politicamente correctas
Gostam de animais, claro
Não o suficiente para os terem em casa
Bem entendido
As responsabilidades, a prisão nos movimentos
Das suas vidas tão cheias, tão interessantes
E eu fico a pensar
Se reflectiram sobre o uso escasso dos seus óvulos
Dos seus espermatozóides elitistas e raros
Será que também pensaram
Se iriam ter tempo para a prole
Daí eventualmente resultante
Se conseguiriam roubar às suas actividades medíocres
Um raio de luz para as crianças
Estou convencida que sim e que não
Estes seres tão grandiosos, tão menores
Tão diminutos na escala da evolução
Na estatura espiritual
Nem compreendem nada
Para além do egoísmo
Do cumprimento das linguagens de repetição
Dos ecos e da litania do que sempre respiraram
Na harmonia dos seus
Ana Wiesenberger
18-07-2013
Imagem - George Grosz
Amai-vos uns aos outros Se tudo é breve Até a alvura da neve Se transforma em lama Sejam a flor rara no alto da montanha Sejam verdade Sejam luz Que os vossos olhos Não pousem nos olhos dos vossos irmãos Com ignomínia Que os vossos lábios Não ocultem cinismo Por detrás dos sorrisos Amai-vos uns aos outros Como o calor do sol Que a todos abraça sem distinção Sejam mãos estendidas Sejam pão e água Sejam abrigo e bússola Amai-vos uns aos outros Na alegria E na tristeza Na chegada E na partida No recolhimento dos vossos lares E no burburinho da multidão Amai-vos uns aos outros Para que no amanhã se acrescentem As bem-aventuranças hoje construídas Para que a solidariedade seja a força Para que a união seja o hino Amai-vos uns aos outros Com a benevolência da tolerância A coroar os dias Com a paciência de crer, de premeditar Na comunhão feita de integridade Que é possível aos homens Transcender a utopia E dar corpo ao verbo Religar Ana Wiesenberger 31-03-2013
Imagem - Diego Rivera
As pessoas são aqueles mamíferos engraçados
Que falam e dizem,
Convencem
E proclamam
Verdades e deuses
De hoje, de ontem
E de amanhã
As pessoas, são aqueles mamíferos curiosos
Que transformam a comida,
O modo de carregar as crias
E a plumagem
Camuflagem
Das idades que inventaram
As pessoas, são aqueles mamíferos confusos
Que superam a hiena e o crocodilo,
Que riem e que choram
Por razões inqualificáveis
E pagam, às vezes
Para as poder classificar
As pessoas, são aqueles mamíferos inteligentes
Que usam símbolos territoriais à toa,
Que se unem e dividem
Sem explicação plausível,
Que dormem ao contrário
Da noite e do cansaço,
Que esqueceram os sentidos,
Mas estão convencidos
Que vêem,
Que sentem nos dedos e nas glândulas
O pulsar da vida
Ana Wiesenberger in Dias Incompletos