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querotrazerapoesiaparaarua

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Por dentro do muro das horas

Carl Vilhelm Holsoe

 

Por dentro do muro das horas
Só os livros me libertam
E acariciam-me o estar num diálogo permanente

 

Há aqueles com que desperto de manhã
E os que me embalam o corpo até ao sono
Há os que me animam na hora do cansaço crepuscular
E abafam com as suas páginas sempre certas
As dúvidas, a incerteza de ter vivido o dia

 

Gosto de me envolver com as vozes de uma Rússia feudal
Com a contenção preconceituosa de uma Inglaterra do século XIX
Com a inquietação intelectual de Paris na primeira metade do século XX
E com a magia dos contos para a infância da Alemanha ou da Dinamarca

 

E depois converso com o meu companheiro de route de todas as estações e idades
Com quem, todavia, não pude partilhar a mesa no Martinho da Arcada de outros tempos
E rimos juntos do absurdo teatral das nossas vidas impregnadas de palavras
Torturadas numa busca incessante do verbo que em nós mora e onde reside
A nossa única forma de ser

 

Ana Wiesenberger
Fevereiro 2016

 

Imagem – Carl Vilhelm Holsoe

Não Me Apetece Ir

Scott Youdale

 

Não me apetece ir
Ir e Voltar
Ir e voltar
Neste exercício exímio
Da arte de não estar em lado nenhum

 

Se vou, lá não estou
Os pensamentos fogem-me para aqui
Se venho, também não consigo ser real aqui
Os pensamentos afastam-se numa corda entrançada
Em dor

 

E assim, os dias correm
Passa a vida, que não se tem
Por entre a outra, que se vai tendo
E os desejos sempre imensos e difusos
Como lagos turvos de profundidades incalculáveis
Tornam-se musgo na superfície autofágica
E impenetrável de fé

 

Ana Wiesenberger
07-04-2015

Imagem – Scott Youdale

A Páscoa

sick-dog-public-domain

A Páscoa era o almoço num restaurante rústico
Com parque para a pequenada
E jogo da malha para o meu pai e os outros
As mulheres conversavam engomadas em vestidos novos
E cabelos emproados enquanto descansavam os pés castigados
Pelos sapatos ainda muito apertados nos banquinhos de madeira
E lá iam vigiando as crianças por entre as rendas e as novidades
Da semana

 

A Páscoa era a visita obrigatória aos afilhados
As amêndoas e as prendas, os pratos atafulhados
Folares, ninhos e fios de ovo a condizer com a promessa
De renovação da vida

 

E depois, veio a Páscoa em que o borrego se transformou
Em raiva e sangue dentro de mim
Quando, ao regressar a casa, te encontrei inerte e fria
E os restos guardados para ti com amor
Se tornaram lixo e desperdício

 

Quando te enterrei
Sei bem, que uma grande parte de mim
Foi a enterrar
Contigo

 

As décadas sucederam-se
Mas desde então
A Páscoa só me sabe a morte
Não chega a assumir qualquer ressurreição
Na minha mente não há ovos coloridos
Que consigam tapar a imagem de um dos seres
Que mais amei
Só, hirta e fria

 

Ana Wiesenberger
03-04-2015

Imagem – Domínio público (internet)

Nunca Gravei As Minhas Iniciais

Vincent Van Gogh - Mulberry Tree

Nunca gravei as minhas iniciais
Com as de outrem
Num coração tosco
Num tronco de árvore do jardim

 

Nunca o fiz também
Nas carteiras de madeira da escola
Daquele tempo
Talvez nunca sentisse vontade
De associar o meu nome a outro nome
Como se soubesse de antemão
Que tal nunca faria sentido

 

Vivi, antes, como uma árvore
Que cresce em ramos
Ao Longo das sucessivas Primaveras
Que em si a força encerra

 

Expandi-me num processo de integração consentida
Sem perder a identidade
Acrescentei, apenas, à minha existência os eleitos
Um filho, um marido, vários seres lindos de quatro patas
Em que consigo ver o meu rosto oculto

 

E assim, perturba-me, por vezes
A facilidade com que as pessoas se colam umas às outras
Nu ma fúria desmesurada de criar sentido na ausência dele
Da construção de um espanta-espíritos débil
Para fazer face à morte – ao fim

 


Ana Wiesenberger
28-03-2015

Imagem – Vincent Van Gogh

O Dia Começa Em Bruma

Edmund Dulac - The buried Moon

O dia começa em bruma
Resquícios de uma Alcácer-Quibir
Sempre presentes
Sempre por resolver
A cortar, dilacerantes
A pretensa paz por edificar em mim
Horas possíveis de construção de sentido

 

As vozes do passado são muitas
E os seus gritos sobrepõem-se ao presente
Tornam-me impossível conciliar
Os caminhos seguidos, ditados pela razão megera
Que me algemou ao sofrimento constante
Feridas abertas e purulentas dos sonhos sacrificados
Eternamente cativos na cave da minha vida
E só libertados em memória dolorosa
Quando a tempestade me trespassa
E me dá ganas de assassinar o real
Por ser uma mentira torpe

 

O dia começa com um travo estranho, bolorento
Que me causa náusea e me exila da vontade do suster
Substância que o corpo sossegou numa agonia bafienta
A amordaçar o espírito no Não-Ser
E o único rumo, que ainda me resta
É Ser através da tinta no papel amigo
Aranha triste a um canto do tempo incerto
A aguardar a morte na sua teia breve

 

Ana Wiesenberger
14-11-2014

Imagem - Edmund Dulac

 

Depois do Jantar

14. Koulakov, Ivan - After Dinner

 

Depois do jantar
Na esplanada do bairro
Entre conversas banais
Cumprimentos aos vizinhos
Acenos respeitosos de cabeça
E sorrisos a condizer
Fujo para outras noites diferentes
Paragens longínquas de férias exóticas
Intervalos da rotina que nos levam
Pretensamente para longe de nós

 

E deixo chegar até mim
Outras línguas, outras vozes alegres
De uma boa disposição emprestada
Pelo tudo incluído em oito dias de Caraíbas
Encantos de palmeiras e mesas cheias de acepipes
Frutas mil ao pequeno-almoço no terraço apetecido
E areais dourados a vestirem o dia de encanto e calor

 

Todavia, não há manjares nem bebidas
Que nos consigam exilar dos nossos fardos
Tudo não passa de uma ida no carrossel da feira da infância
Em que rejubilamos de magia e cor
Sob a embriaguez da música alucinante
Até ao momento em que ele pára
E voltamos ao chão da realidade

 

Ana Wiesenberger
26-06-2013

Imagem – Ivan Koulakov

A Harmonia, O Bem-estar Residem Nestes Momentos

Diana Grigore

A harmonia, o bem-estar residem nestes momentos
Em que juntas partilhamos o calor da cama
E a certeza de estarmos onde queríamos estar
Sem mais nada desejar

 

O inverno não entra nos nossos corações
Quando nos aninhamos por entre os cobertores
E só o ar que entra pela janela entreaberta
Perturba o nosso recolhimento com o ruído alheio

 

Elas dormitam, olham-me, recebem festas minhas
Eu bebo café, fumo e preparo mentalmente o dia
Antes de o agarrar com a determinação de quem sabe
Que o tempo é uma dádiva esquiva

 

Mas enquanto me sentir una e acompanhada
Pela ternura dos meus filhos de duas e quatro patas
Pela amizade dos meus amigos reais e virtuais
Cada jornada é uma promessa de fé
Que vou conseguir realizar

 

E quando já não o puder fazer
E as horas passarem por mim
Baças, sem sentido e sem rumo
Viajarei através da memória
A este e outros redutos
Da felicidade que vivi

 

Ana Wiesenberger
23-10-2014

Imagem - Diana Grigore

 

 

São As Pequenas Coisas

Ray Caesar - Consort

São as pequenas coisas
Os gestos simples
Que nos nutrem a alma

A frescura da água
No nosso rosto pela manhã
O conforto do roupão depois do duche
O cheiro do café a inundar a casa
A anunciar o início de mais um dia

São os sorrisos dos colegas, dos amigos
Um bom-dia afectuoso que ouvimos
Um comentário que nos faz sentir pertença
Uma pergunta íntima e não retórica
A inquirir, se estamos bem

O sabor dos alimentos à hora da refeição
O quente e o frio a espalhar sensações
Na nossa boca, no nosso corpo
A sede que se mitiga com a facilidade
De um copo diante de nós
A algazarra da família em redor da mesa
As vozes díspares e contudo, unas
De quem respira um quotidiano partilhado
De anseios e preocupações
De encontros e desencontros
Lá fora, do lado de lá da porta

E a paz do recolhimento ao cair da noite
Ao fecho de mais uma jornada
As boas-noites, os bons sonhos
Que mutuamente se desejam
A tranquilidade das pálpebras que descem
Rendidas à melodia do sono

Ana Wiesenberger
23-10-2014

Imagem - Ray Caesar

 

Ansiedade

 

O peito é um sapo a arfar
O suor aflora-me as têmporas e a nuca
A náusea instala-se, firme

 

Corro os olhos pelos objectos em redor
Mas nenhum me arrasta desta aflição
Tombo os pensamentos pelos rostos familiares
Não me ocorre alívio

 

Desabo para o ecrã do PC sem saber porquê
Desenrolo o Mail sem interesse:
Jornais que não quero ler,
Junk bem-intencionada, dos amigos
Que julgam ser

 

Apetecia-me clickar a palavra HELP
E fazê-la deslizar pela W.W.W.
À procura de consolo
Mas a memória diz-me
Que já o fiz antes;
Apareceram-me linhas de ajuda específicas
Baralharam-me o sofrimento
Em secções informatizadas

 

É melhor sair para o parque
Ao encontro das árvores
E fundir-me nos cheiros e nas cores
Delicadamente, pousada num banco.

 

Ana Wiesenberger (in IDADES)

Imagem - Parque de Vanicelos em Setúbal

 

 

 

Andam Figuras Altivas, Desconhecidas

Andam figuras altivas, desconhecidas
A passear dentro de mim

 

Os sentidos embotados fazem-me crer
Que não sei, para onde ir
Ou o que fazer

 

Tacteio possibilidades no escuro da minha mente
Mas não vislumbro nada além dos pirilampos psicadélicos
Dos rostos que perdi

 

As árvores oscilam e dobram-se sobre mim
Numa carícia de orvalho fraco de Verão

 

Queria ler
Não consigo
Tenho um caldeirão cheio de palavras
A fervilhar no meu sangue

 

A tarde vem e não vem
E eu quero ir com ela
Para junto do mar

 

Porque receio ir, então?
Se anseio por mergulhar na água fria
E de facto, só é Outono no calendário

 

É talvez a vontade envergonhada de seguir
Pela estrada azul, esverdeada
Sempre a direito
Até ao meu castelo ditoso
De menina do mar

 

Ana Wiesenberger
29-09-2009

Imagem – Edmund Dulac

 

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