Por dentro do muro das horas Só os livros me libertam E acariciam-me o estar num diálogo permanente
Há aqueles com que desperto de manhã E os que me embalam o corpo até ao sono Há os que me animam na hora do cansaço crepuscular E abafam com as suas páginas sempre certas As dúvidas, a incerteza de ter vivido o dia
Gosto de me envolver com as vozes de uma Rússia feudal Com a contenção preconceituosa de uma Inglaterra do século XIX Com a inquietação intelectual de Paris na primeira metade do século XX E com a magia dos contos para a infância da Alemanha ou da Dinamarca
E depois converso com o meu companheiro de route de todas as estações e idades Com quem, todavia, não pude partilhar a mesa no Martinho da Arcada de outros tempos E rimos juntos do absurdo teatral das nossas vidas impregnadas de palavras Torturadas numa busca incessante do verbo que em nós mora e onde reside A nossa única forma de ser
Não me apetece ir Ir e Voltar Ir e voltar Neste exercício exímio Da arte de não estar em lado nenhum
Se vou, lá não estou Os pensamentos fogem-me para aqui Se venho, também não consigo ser real aqui Os pensamentos afastam-se numa corda entrançada Em dor
E assim, os dias correm Passa a vida, que não se tem Por entre a outra, que se vai tendo E os desejos sempre imensos e difusos Como lagos turvos de profundidades incalculáveis Tornam-se musgo na superfície autofágica E impenetrável de fé
A Páscoa era o almoço num restaurante rústico Com parque para a pequenada E jogo da malha para o meu pai e os outros As mulheres conversavam engomadas em vestidos novos E cabelos emproados enquanto descansavam os pés castigados Pelos sapatos ainda muito apertados nos banquinhos de madeira E lá iam vigiando as crianças por entre as rendas e as novidades Da semana
A Páscoa era a visita obrigatória aos afilhados As amêndoas e as prendas, os pratos atafulhados Folares, ninhos e fios de ovo a condizer com a promessa De renovação da vida
E depois, veio a Páscoa em que o borrego se transformou Em raiva e sangue dentro de mim Quando, ao regressar a casa, te encontrei inerte e fria E os restos guardados para ti com amor Se tornaram lixo e desperdício
Quando te enterrei Sei bem, que uma grande parte de mim Foi a enterrar Contigo
As décadas sucederam-se Mas desde então A Páscoa só me sabe a morte Não chega a assumir qualquer ressurreição Na minha mente não há ovos coloridos Que consigam tapar a imagem de um dos seres Que mais amei Só, hirta e fria
Nunca gravei as minhas iniciais Com as de outrem Num coração tosco Num tronco de árvore do jardim
Nunca o fiz também Nas carteiras de madeira da escola Daquele tempo Talvez nunca sentisse vontade De associar o meu nome a outro nome Como se soubesse de antemão Que tal nunca faria sentido
Vivi, antes, como uma árvore Que cresce em ramos Ao Longo das sucessivas Primaveras Que em si a força encerra
Expandi-me num processo de integração consentida Sem perder a identidade Acrescentei, apenas, à minha existência os eleitos Um filho, um marido, vários seres lindos de quatro patas Em que consigo ver o meu rosto oculto
E assim, perturba-me, por vezes A facilidade com que as pessoas se colam umas às outras Nu ma fúria desmesurada de criar sentido na ausência dele Da construção de um espanta-espíritos débil Para fazer face à morte – ao fim
O dia começa em bruma Resquícios de uma Alcácer-Quibir Sempre presentes Sempre por resolver A cortar, dilacerantes A pretensa paz por edificar em mim Horas possíveis de construção de sentido
As vozes do passado são muitas E os seus gritos sobrepõem-se ao presente Tornam-me impossível conciliar Os caminhos seguidos, ditados pela razão megera Que me algemou ao sofrimento constante Feridas abertas e purulentas dos sonhos sacrificados Eternamente cativos na cave da minha vida E só libertados em memória dolorosa Quando a tempestade me trespassa E me dá ganas de assassinar o real Por ser uma mentira torpe
O dia começa com um travo estranho, bolorento Que me causa náusea e me exila da vontade do suster Substância que o corpo sossegou numa agonia bafienta A amordaçar o espírito no Não-Ser E o único rumo, que ainda me resta É Ser através da tinta no papel amigo Aranha triste a um canto do tempo incerto A aguardar a morte na sua teia breve
Depois do jantar Na esplanada do bairro Entre conversas banais Cumprimentos aos vizinhos Acenos respeitosos de cabeça E sorrisos a condizer Fujo para outras noites diferentes Paragens longínquas de férias exóticas Intervalos da rotina que nos levam Pretensamente para longe de nós
E deixo chegar até mim Outras línguas, outras vozes alegres De uma boa disposição emprestada Pelo tudo incluído em oito dias de Caraíbas Encantos de palmeiras e mesas cheias de acepipes Frutas mil ao pequeno-almoço no terraço apetecido E areais dourados a vestirem o dia de encanto e calor
Todavia, não há manjares nem bebidas Que nos consigam exilar dos nossos fardos Tudo não passa de uma ida no carrossel da feira da infância Em que rejubilamos de magia e cor Sob a embriaguez da música alucinante Até ao momento em que ele pára E voltamos ao chão da realidade
A harmonia, o bem-estar residem nestes momentos Em que juntas partilhamos o calor da cama E a certeza de estarmos onde queríamos estar Sem mais nada desejar
O inverno não entra nos nossos corações Quando nos aninhamos por entre os cobertores E só o ar que entra pela janela entreaberta Perturba o nosso recolhimento com o ruído alheio
Elas dormitam, olham-me, recebem festas minhas Eu bebo café, fumo e preparo mentalmente o dia Antes de o agarrar com a determinação de quem sabe Que o tempo é uma dádiva esquiva
Mas enquanto me sentir una e acompanhada Pela ternura dos meus filhos de duas e quatro patas Pela amizade dos meus amigos reais e virtuais Cada jornada é uma promessa de fé Que vou conseguir realizar
E quando já não o puder fazer E as horas passarem por mim Baças, sem sentido e sem rumo Viajarei através da memória A este e outros redutos Da felicidade que vivi
São as pequenas coisas Os gestos simples Que nos nutrem a alma
A frescura da água No nosso rosto pela manhã O conforto do roupão depois do duche O cheiro do café a inundar a casa A anunciar o início de mais um dia
São os sorrisos dos colegas, dos amigos Um bom-dia afectuoso que ouvimos Um comentário que nos faz sentir pertença Uma pergunta íntima e não retórica A inquirir, se estamos bem
O sabor dos alimentos à hora da refeição O quente e o frio a espalhar sensações Na nossa boca, no nosso corpo A sede que se mitiga com a facilidade De um copo diante de nós A algazarra da família em redor da mesa As vozes díspares e contudo, unas De quem respira um quotidiano partilhado De anseios e preocupações De encontros e desencontros Lá fora, do lado de lá da porta
E a paz do recolhimento ao cair da noite Ao fecho de mais uma jornada As boas-noites, os bons sonhos Que mutuamente se desejam A tranquilidade das pálpebras que descem Rendidas à melodia do sono
O peito é um sapo a arfar O suor aflora-me as têmporas e a nuca A náusea instala-se, firme
Corro os olhos pelos objectos em redor Mas nenhum me arrasta desta aflição Tombo os pensamentos pelos rostos familiares Não me ocorre alívio
Desabo para o ecrã do PC sem saber porquê Desenrolo o Mail sem interesse: Jornais que não quero ler, Junk bem-intencionada, dos amigos Que julgam ser
Apetecia-me clickar a palavra HELP E fazê-la deslizar pela W.W.W. À procura de consolo Mas a memória diz-me Que já o fiz antes; Apareceram-me linhas de ajuda específicas Baralharam-me o sofrimento Em secções informatizadas
É melhor sair para o parque Ao encontro das árvores E fundir-me nos cheiros e nas cores Delicadamente, pousada num banco.