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querotrazerapoesiaparaarua

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Escrevo Perante O Rosto da Noite

Edvard Munch - Melancholy

Escrevo perante o rosto da noite
Num hotel que de tão familiar
Me faz crescer em estranheza

Escrevo à luz do cansaço saudável dele
Que lhe permite dormir sem químicos
Virgem ao mundo dos fármacos
Em que os outros existem em On e Off

Escrevo na companhia do vinho tinto do copo
Que felizmente me dobra a loucura
Me afaga a solidão
E me diz, que devia encostar a cabeça à almofada
Como se eu fosse um cabritinho jovem e desajeitado
A quem a mãe explica a necessidade de descansar
No verde da planície para aguentar a jornada de amanhã

Escrevo na voragem dos que não têm companhia
Mas se fingem acompanhados pelas páginas dos outros
A que se agarram, desesperados de mitigar a sede endémica
Do deserto fabricado com a ausência consentida ao longo dos anos
Em que se afastaram dos demais

Este é o murmúrio das horas paradas
O rebuliço invisível do pântano
Em que os nenúfares moribundos
Nos pedem para calar os gritos de lodo

Esta é a noite que canta a uma só voz
A canção daqueles que por si ou por destino
São os desenraizados do bem-estar

Ana Wiesenberger
10-04-2015

Imagem - Edvard Munch

 

 

O Vazio Prolonga As Horas

Arthur Rackham
O vazio prolonga as horas
Estica os minutos em não-ser
Não-estar, não-ver, não-sentir

Se ao menos, ao acender uma vela
Comunicasse a vontade de luz
Orientação numa escuridão medonha
Que me atormenta
Incompreensível para um ser da noite

O que paira sobre mim é a dor
Os dentes aguçados do que não quero
Assumir ou compreender

Sempre quis inventar caminhos
Sempre fiz trilhos, vias abertas
E agora pareço um morcego embriagado
De estranheza
A embater nas esquinas dos muros
Esquecido de um radar ancestral
Que lhe daria a paz dos percursos
Conhecidos, apetecidos

Amanhã permanecerá ainda
O grito contido, estrangulado
Desabituado de habitar a garganta

Ana Wiesenberger
19-08-2014

Imagem - Arthur Rackham

As Pessoas Sós Passam O Tempo

Henri Toulouse Latrec
As pessoas sós passam o tempo
A deslizarem interminavelmente
Pelos corredores dos seus pensamentos
Construídos na ausência, na exclusão
Dos ecos das outras vozes
Que talvez desejassem perto, às vezes

Arrastam cada detalhe com cuidado
Como se pisassem vidros finos
E cada novo trilho é sempre a procura
Do indefinível na trivialidade da aparência
Dos factos quotidianos

Erram os olhos numa distância íntima
Entre sombras e prenúncios de formas
Que deslindam com vagar
Como se caminhassem à beira-mar
Numa demanda de conchas pequeninas
Suspensas numa filigrana de espuma breve

E quando lhes acontece estar entre os outros
Desatam esgares em vez de sorrisos
Desajeitadas, distraídas dos gestos convencionais
Mal articuladas em frases soltas
Num trapézio de expectativas vãs
De se verem compreendidas

E depois regressam ao seu espaço
Calçam os seus passos inseguros de exterior
Com as pantufas de feltro velho dos seus sonhos
E aninham-se na poltrona puída de uma saudade
Singular a tecer fios novos para a sua teia
Com a consciência triste de ser aranha e mosca
Em simultâneo
Num conluio de estranheza

Ana Wiesenberger
01-06-2014

Imagem - Henri Toulouse Latrec

Na Cabeça Vazia Pesam-me AS Vozes

Albert Birkle

 

Na cabeça vazia pesam-me as vozes
Que não consigo escutar
Oiço-as já, só como ruído, perturbação
Do meu silêncio arrebatador

Quebram-se nas pontes os pilares dos sentidos
A que me agarro em vão
E despenho-me numa imensidão de incerteza
Aguarela tépida a esfumaçar fios tremendos
De tempo e tempos por adivinhar
São cruzes ou são corvos
Que os meus olhos cansados descobrem
No horizonte tenaz da minha paisagem interior

Não consigo agarrar os contornos das coisas
As muralhas são redes envenenadas por medos
Dos ecos dos meus fantasmas febris

Os olhos dobram-se sob o peso dos séculos
Catedrais dispersas de Deuses reais e irreais
Que me rasgaram o peito em preces absurdas

Escuto agora a água a cantar numa fonte qualquer
Que ainda sangra dentro de mim
Centopeias melodiosas de sonhos

Ana Wiesenberger
27-05-2012

Imagem - Albert Birkle

As Pessoas Sós Vivem No Silêncio

Imagem - Ray Caesar

 

 

As pessoas sós vivem no silêncio

Ou no ruído impessoal

Nas vozes que moram no radio

E na televisão

Na harmonia da música

Que escolhem ou não escolhem

Mas escutam

Em horas improváveis ou não

 

As pessoas sós vivem, às vezes

Em bairros virtuais

Onde as campainhas são teclas

E as saudações, ícones engraçados

A abrir e a fechar sorrisos

E abreviaturas cómodas

Que nada querem dizer

Mas a que se habituaram

 

As pessoas sós

Procuram outras pessoas sós

Para se sentirem acompanhadas

E depois surpreendem-se

Pelo passo vão

Pela distância insuperável

Abissal

 

As pessoas sós desaprendem

A companhia

Mumificaram no eu

Os outros ecos

Exilaram-se do toque humano

Deixam cair as mãos ao longo do corpo

Numa higiene de separação sem ponte

Isenta de abraço

 

As pessoas sós

Coleccionam muitas noites de vácuo

De lágrimas, talvez

E acostumaram-se a dar uma volta pela casa

Antes de recolher ao leito

Precisam de verificar portas, janelas, botões

De electrodomésticos

Antes de fecharem o dia

Com uma pressão brusca no interruptor da luz

E a esperança que o sono lhes traga o sonho

Do que não conseguiram ser

 

Ana Wiesenberger

11-04-2013

 

Imagem – Ray Caesar

 

 

 

Livros

imagem - Gerrit Van Vucht

 

Livros

Papéis pintados, talvez

Telas vivas de cores e cheiros

Que abrimos e fechamos

Ao sabor da nossa apetência

Feita de tempo e de vontade

 

Livros

Companheiros fiéis na nossa solidão

Exorcismo estilizado do nosso medo

De enfrentar o vazio

 

Livros

Que nos seguem nos percursos

Nas malas do tempo já consumido

Nos momentos entreabertos a tecer desejos

De plenitude

Nos outros que nos deixam confusos, perdidos

Às avessas de nós

 

Livros

Que oferecemos, como se fossem mensageiros

Do nosso sentir

Que guardamos na memória esbatida

Fios distintos entrelaçados na tapeçaria singular

Construída pelas nossas escolhas, as nossas viagens

Num emaranhado de sedução feito de títulos e capas

Lombadas com nomes que nos chamam em sussurro

Que nos convidam a ver a vida através de outros olhos

Noutros palcos distantes da nossa realidade

 

Livros

Que nos transtornam

Que nos despertam

Que nos libertam da apatia

Que nos abraçam na hora de Morfeu

Que nos convencem a ser iguais

Sendo únicos

 

Ana Wiesenberger

07-02-2014

 

Imagem- Gerrit Van Vucht

Na Minha Vida Deixei-me Abraçar

Imagem - Pedro César Teles

Na minha vida deixei-me abraçar
Por patas e páginas
Cães, Gatos
Livros, jornais, revistas
Cadernos meus em que mergulhei
Emoções
Em que tentei encadernar a minha solidão
Endémica

Houve sempre mãos a quererem-me tocar
E eu a querer ser tocada
Aprisionada na torre do meu ser
Sem me conseguir libertar
Sem me conseguir dar
A ninguém

Todavia, sinto com tanto fervor
O Colectivo; as vozes feitas de terra
Sangue e Dor
Os desprotegidos, os segregados
Pela amoralidade dos sistemas
Pela indiferença confortável
Dos que juraram viver bem
Num quadrado bem definido
De presunção e concepções estreitas
Fechadas à dinâmica do crescimento
Da elevação do percurso humano

Na minha vida, restam-me as palavras
Para chegar aos outros e a mim
E às vezes, quando o sol se põe
E a noite me enlaça numa exteriorização
Da minha amargura, da minha escuridão
Olho o céu através da cortina das minhas lágrimas
E procuro nas estrelas longínquas
Todas as vozes e os cheiros amigos
Que já se apartaram de mim

Ana Wiesenberger
20-08-2013

 

Imagem - Pedro César Teles





Para Mim Não Há Regresso

Imagem - Frederic Edwin Church

 

Para mim, não há regresso

Estraguei-me nos caminhos;

A ânsia de ir e de ver

 

Sonhei longos sonhos de princesa

Entre castelos e bonecas de menina

Mas vesti casacos negros e longos

Demais

Demasiado

Cedo

 

Esbanjei abraços e beijos

Até perder o sentido deles

E dos sentimentos em si

 

Cumpri, o que era para cumprir

Em parte

Alinhei, no que era para alinhar

Em parte

Vi e fui vista

Acenei e acenaram-me

Mas quando a consciência chegou

Os abraços alongaram-se-me ao longo do corpo

Vazios

Tristes

Ausentes

Da totalidade

Do uno

Do Estar, do Ser

A dois

 

Ana Wiesenberger

Junho 1994

 

 Imagem - Frederic Edwin Church

A Solidão Galopa Os Meus Dias

A solidão galopa os meus dias
De crinas soltas ao vento
Da tristeza
Da apatia
Da fúria que vai e vem
E faz ferida
No meu corpo indeciso
E vazio

Fecho-me nas palavras
Aninho-me por entre as páginas
À procura do calor
Da companhia
De outra voz
Que me fale
Que me entenda
Que me leve para longe daqui

Passeio-me pelas cores
Deambulo entre pinturas díspares
Encontro com sensibilidades
Que me tocam
Que me afagam
Que resgatam na minha consciência
A vontade enferma
Para olhar em redor

Sonho com bosques vivos
Mares e penhascos
Terra, maresia
O verde revigorante das árvores
A frescura salgada da água
Mas o farol que devia iluminar
Os meus passos
Permanece oculto
Não atravessa o cerro da floresta
Não vence a densidade do nevoeiro

14-03-2013

Ana Wiesenberger

Imagem - Munch

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