Escrevo perante o rosto da noite Num hotel que de tão familiar Me faz crescer em estranheza
Escrevo à luz do cansaço saudável dele Que lhe permite dormir sem químicos Virgem ao mundo dos fármacos Em que os outros existem em On e Off
Escrevo na companhia do vinho tinto do copo Que felizmente me dobra a loucura Me afaga a solidão E me diz, que devia encostar a cabeça à almofada Como se eu fosse um cabritinho jovem e desajeitado A quem a mãe explica a necessidade de descansar No verde da planície para aguentar a jornada de amanhã
Escrevo na voragem dos que não têm companhia Mas se fingem acompanhados pelas páginas dos outros A que se agarram, desesperados de mitigar a sede endémica Do deserto fabricado com a ausência consentida ao longo dos anos Em que se afastaram dos demais
Este é o murmúrio das horas paradas O rebuliço invisível do pântano Em que os nenúfares moribundos Nos pedem para calar os gritos de lodo
Esta é a noite que canta a uma só voz A canção daqueles que por si ou por destino São os desenraizados do bem-estar
O vazio prolonga as horas Estica os minutos em não-ser Não-estar, não-ver, não-sentir
Se ao menos, ao acender uma vela Comunicasse a vontade de luz Orientação numa escuridão medonha Que me atormenta Incompreensível para um ser da noite
O que paira sobre mim é a dor Os dentes aguçados do que não quero Assumir ou compreender
Sempre quis inventar caminhos Sempre fiz trilhos, vias abertas E agora pareço um morcego embriagado De estranheza A embater nas esquinas dos muros Esquecido de um radar ancestral Que lhe daria a paz dos percursos Conhecidos, apetecidos
Amanhã permanecerá ainda O grito contido, estrangulado Desabituado de habitar a garganta
As pessoas sós passam o tempo A deslizarem interminavelmente Pelos corredores dos seus pensamentos Construídos na ausência, na exclusão Dos ecos das outras vozes Que talvez desejassem perto, às vezes
Arrastam cada detalhe com cuidado Como se pisassem vidros finos E cada novo trilho é sempre a procura Do indefinível na trivialidade da aparência Dos factos quotidianos
Erram os olhos numa distância íntima Entre sombras e prenúncios de formas Que deslindam com vagar Como se caminhassem à beira-mar Numa demanda de conchas pequeninas Suspensas numa filigrana de espuma breve
E quando lhes acontece estar entre os outros Desatam esgares em vez de sorrisos Desajeitadas, distraídas dos gestos convencionais Mal articuladas em frases soltas Num trapézio de expectativas vãs De se verem compreendidas
E depois regressam ao seu espaço Calçam os seus passos inseguros de exterior Com as pantufas de feltro velho dos seus sonhos E aninham-se na poltrona puída de uma saudade Singular a tecer fios novos para a sua teia Com a consciência triste de ser aranha e mosca Em simultâneo Num conluio de estranheza
Na cabeça vazia pesam-me as vozes Que não consigo escutar Oiço-as já, só como ruído, perturbação Do meu silêncio arrebatador
Quebram-se nas pontes os pilares dos sentidos A que me agarro em vão E despenho-me numa imensidão de incerteza Aguarela tépida a esfumaçar fios tremendos De tempo e tempos por adivinhar São cruzes ou são corvos Que os meus olhos cansados descobrem No horizonte tenaz da minha paisagem interior
Não consigo agarrar os contornos das coisas As muralhas são redes envenenadas por medos Dos ecos dos meus fantasmas febris
Os olhos dobram-se sob o peso dos séculos Catedrais dispersas de Deuses reais e irreais Que me rasgaram o peito em preces absurdas
Escuto agora a água a cantar numa fonte qualquer Que ainda sangra dentro de mim Centopeias melodiosas de sonhos
Na minha vida deixei-me abraçar Por patas e páginas Cães, Gatos Livros, jornais, revistas Cadernos meus em que mergulhei Emoções Em que tentei encadernar a minha solidão Endémica
Houve sempre mãos a quererem-me tocar E eu a querer ser tocada Aprisionada na torre do meu ser Sem me conseguir libertar Sem me conseguir dar A ninguém
Todavia, sinto com tanto fervor O Colectivo; as vozes feitas de terra Sangue e Dor Os desprotegidos, os segregados Pela amoralidade dos sistemas Pela indiferença confortável Dos que juraram viver bem Num quadrado bem definido De presunção e concepções estreitas Fechadas à dinâmica do crescimento Da elevação do percurso humano
Na minha vida, restam-me as palavras Para chegar aos outros e a mim E às vezes, quando o sol se põe E a noite me enlaça numa exteriorização Da minha amargura, da minha escuridão Olho o céu através da cortina das minhas lágrimas E procuro nas estrelas longínquas Todas as vozes e os cheiros amigos Que já se apartaram de mim
A solidão galopa os meus dias De crinas soltas ao vento Da tristeza Da apatia Da fúria que vai e vem E faz ferida No meu corpo indeciso E vazio
Fecho-me nas palavras Aninho-me por entre as páginas À procura do calor Da companhia De outra voz Que me fale Que me entenda Que me leve para longe daqui
Passeio-me pelas cores Deambulo entre pinturas díspares Encontro com sensibilidades Que me tocam Que me afagam Que resgatam na minha consciência A vontade enferma Para olhar em redor
Sonho com bosques vivos Mares e penhascos Terra, maresia O verde revigorante das árvores A frescura salgada da água Mas o farol que devia iluminar Os meus passos Permanece oculto Não atravessa o cerro da floresta Não vence a densidade do nevoeiro