Balanço-me entre dois mundos Duas línguas Duas paisagens Duas culturas Um regresso anunciado A algo em que não acredito Um recanto de uma casa de quinta Que era o paraíso dentro de mim E onde o jardim me convidava a ler Ou descansar sob a sombra amiga da cerejeira
Talvez os netos pulassem por entre o meu silêncio Talvez eles quebrassem o vidro da torre invisível Em que há muito me encerrei Talvez eles rasgassem em mim Véus de ternura e cuidado adormecidos Talvez na sala houvesse uma cadeira de baloiço À minha espera, junto à lareira nas noites de invernia
Mas não há tal casa e a cerejeira só permanece frondosa Nas latitudes do meu sonho de menina que nunca abandonei São errâncias do desejo, memórias fragmentadas de outros dias Rumos esquecidos, páginas viradas, queimadas sob o sol dos anos Nós que o tempo nunca logrou desfazer
Balanço-me intermitentemente entre fronteiras reais e imaginárias De braços humildemente estendidos para um horizonte indistinto Em que apenas quero ver futuro
A chuva copiosa bate na minha janela E desata deste lado da vidraça Uma explosão de desejos Surgem piqueniques de livros Saltam as tampas das caixas dos bombons O radio assalta-me com um trecho da Flauta Mágica E a gravura a lápis de cor de Kokoschka Liberta os cantores imprevistos na minha sala
Foi-se a vontade de trabalhar Subiu no ar uma fragrância hilariante Que anima em mim resquícios de Alice à hora do chá Na deliciosa companhia do Coelho e do Chapeleiro Louco
E depois ela pára subitamente Sai da minha cabeça para ficar só lá fora e ser chuva trivial E eu volto à quietude do meu espaço com olhos de Dorothy De regresso ao Kansas A tentar convencer-me que a magia está dentro de nós E podemos sempre procurar o caminho para Oz Quando sentirmos a pequenez sufocante do nosso quintal Vedar a nossa alegria de sermos pássaros coloridos