O dia começa em bruma Resquícios de uma Alcácer-Quibir Sempre presentes Sempre por resolver A cortar, dilacerantes A pretensa paz por edificar em mim Horas possíveis de construção de sentido
As vozes do passado são muitas E os seus gritos sobrepõem-se ao presente Tornam-me impossível conciliar Os caminhos seguidos, ditados pela razão megera Que me algemou ao sofrimento constante Feridas abertas e purulentas dos sonhos sacrificados Eternamente cativos na cave da minha vida E só libertados em memória dolorosa Quando a tempestade me trespassa E me dá ganas de assassinar o real Por ser uma mentira torpe
O dia começa com um travo estranho, bolorento Que me causa náusea e me exila da vontade do suster Substância que o corpo sossegou numa agonia bafienta A amordaçar o espírito no Não-Ser E o único rumo, que ainda me resta É Ser através da tinta no papel amigo Aranha triste a um canto do tempo incerto A aguardar a morte na sua teia breve
Às vezes o dia é grito Outras é silêncio Às vezes é berço E outras é túmulo Das emoções que escorrem Nas asas furtivas das horas Que nos cingem Mas não agarramos
Às vezes o dia é sangue Mordaça de sentimentos Medos que nos fazem abrigar Aos cantos de nós Num desespero de fera ferida A estremecer numa teia Que tecemos sem dar por isso Enquanto procurávamos a luz
Às vezes o dia é fel É desilusão de um nunca acabar Que exila da nossa vontade A crença pagã nos ciclos ancestrais Que deixámos pelos caminhos
Às vezes é-se areia Quando se quer ser rocha Lágrima Quando se quer ser sorriso
Está a nevar Apetecia-me depositar o meu corpo nu Na relva do jardim E confiar à frescura dos flocos melancólicos O apaziguamento dos meus nervos em chamas
Na casa, aqui e ali Os sinais evidentes das fúrias que me dominam Numa exaltação de dor prisioneira A jorrar de um vulcão incalculável
É triste, este viver aos solavancos dentro de mim E só chegar aos outros Em pantominas de excesso Escuridão rasgada em raios assustadores Feridas regadas com a gasolina Que o tempo entendeu espalhar Numa composição de loucura
A aranha que me tece Não desiste Franqueia todas as portas E os muros que ergo Nos soluços dos dias
De tanto, querer o sal nas minhas jornadas Escavo mais e mais na minha permanência Grutas e túneis sem sentido Labirintos de caminhos que já esqueci Territórios bastardos das crenças Que já me abandonaram Relógios parados de ponteiros quebrados Em esgares de morte
Se ao menos, houvesse uma frecha de luz Na minha penumbra Se o sol viesse encantar a minha tarde Em melodias douradas Se o mar me abraçasse numa libertação De redes torpes Talvez eu pudesse ser uma concha de paz E eternidade
Ontem tive frio dentro de mim E quis afastar-me do ermo cinzento musgoso Que me apertava na garganta Uma urgência de correr
Ainda olhei em redor A sondar na postura das minhas sentinelas Uma brecha de liberdade Em Vão
Por isso, deixei-me estar atrás do vidro Das muralhas do meu palácio Tão diligentemente construído E fixei no céu aberto Um pedido veemente De uma tempestade tropical
E logo ribombaram luzes magníficas A sacudirem a minha solidão Em abanões de lágrimas E queixumes ancestrais Do meu pacto
Depois, voltei ao meu silêncio Tranquila na responsabilidade do meu caminho Apaziguada e rendida À consciencialização de um dever Que é desejo Que tudo transcende E a tudo obriga E é voz, corpo e carne Em mim
O Retrato de Dorian Gray na minha alma Estilhaça-se em fagulhas cruéis Saem de mim, braços violentos Capazes de dobrar os silêncios antigos Em teias assassinas Para amordaçar os dias Num estrangulamento de raiva
Não vivo. Abocanho tudo em redor de mim Numa fúria de vulcão ressuscitado Numa loucura de quotidiano em Apocalipse Numa transcendência de sangue roubado Ossos moídos, triturados Ao longo das eras
De dia, mastigo envergonhada os gemidos Do cansaço De noite, os uivos dominam o espaço Num rigor de destruição abominável
Deixei de cingir em mim o tempo É ele que me torce e arranca Numa brutalidade de fera ferida Numa vingança lenta e talvez premeditada Pelo garrote velho da racionalidade esventrada
O Retrato de Dorian Gray na minha alma Abre-se em gritos e punhais Para assassinar no presente O passado que vivi