Começo o dia a espiar as horas no relógio de pulso E a afastar a noite de dentro de mim Salpicos de vazio do ontem, ainda a estorvarem-me Na mira da Casa de Partida
A perna esquerda, pelo menos está viva Tenho a certeza porque me dói E desato a rir do absurdo de me lembrar Que o povo assume os ossos Como cérebros da meteorologia
Engulo o café, entranho o fumo do cigarro Mais um e juro, que me vou erguer da cama É domingo, aquele dia meio estúpido Que nem é início nem fim de semana É só uma voz inquietante a censurar-nos Por não termos aproveitado as horas livres Como devíamos E a acenar-nos com a segunda-feira dura de roer
É desta! Espreguiço-me O hálito esquisito ainda não convida a pequeno-almoço Mais tarde, daqui a pouco já como E vem-me à memória súbita, o tempo em que conseguia Deglutir uma tigela de cereais, logo ao despertar
O tempo é um escultor ou uma bomba química, hostil Que destrói as nossas capacidades? Olhamo-nos ao espelho e temos de lavar a cara Aquele estranho(a) diante de nós Para onde terá ido o meu rosto, o meu sorriso? Para onde terá ido a fome do meu olhar?
Electrão Protão Neutrão Campos magnéticos perdidos na memória Guardados no tempo das batas brancas E do cheiro químico do laboratório Que nos transmudava os ânimos em festa
Os convívios de sábado à tarde na cantina do liceu E as primeiras meias de senhora; nylon, cor de pérola A arranharem-me as pernas desajeitadas Sob a saia de xadrez que me roubava o à vontade
Esse foi o tempo maracujá do exótico da descoberta De que os opostos se atraem e os iguais se repelem Embora isso só nos transtorne a vida e o estar
Mais tarde, a época dos espelhos, das luzes E dos cromados das viaturas de duas e quatro rodas Em que partíamos numa realização de som e de fúria Que para tantos terminou em cinza
E agora, no tempo ameno dos lilases Balança-se tudo na arca das recordações E o início da jornada, o cheiro de baunilha do jardim-escola Entranhado nas minhas narinas de menina Já não me parece tão inócuo Porque, afinal, delineou o meu caminho até ti Talvez porque o cansaço de ser vermelho e preto Me levasse a procurar o rosa que abarcava todos os nossos caprichos E birras Sem nunca deixar de ser um regaço de ternura, um reduto de apaziguamento A caverna apetecida onde os nossos olhos viviam as aventuras coloridas Que passavam no ecrã gigante da alvura da parede na nossa sala de cinema
A harmonia, o bem-estar residem nestes momentos Em que juntas partilhamos o calor da cama E a certeza de estarmos onde queríamos estar Sem mais nada desejar
O inverno não entra nos nossos corações Quando nos aninhamos por entre os cobertores E só o ar que entra pela janela entreaberta Perturba o nosso recolhimento com o ruído alheio
Elas dormitam, olham-me, recebem festas minhas Eu bebo café, fumo e preparo mentalmente o dia Antes de o agarrar com a determinação de quem sabe Que o tempo é uma dádiva esquiva
Mas enquanto me sentir una e acompanhada Pela ternura dos meus filhos de duas e quatro patas Pela amizade dos meus amigos reais e virtuais Cada jornada é uma promessa de fé Que vou conseguir realizar
E quando já não o puder fazer E as horas passarem por mim Baças, sem sentido e sem rumo Viajarei através da memória A este e outros redutos Da felicidade que vivi